domingo, 5 de outubro de 2008

1983


Setembro, 15.
  1. Fotos para o programa.

Tenho uma Recordação Escolar de 1963. Foi num dia cinza em Forqueta que a rotina de aulas foi quebrada. O fotógrafo passou pelo Grupo Escolar Francisco Generozzi. Uma fila imensa e longa espera até chegar na escrivaninha improvisada no pátio. Uma bandeira do Brasil ao fundo, um globo no lado direito e um número para identificar o aluno. Meu número foi o treze. Apesar de ser uma foto em preto-e-branco, o mapa foi pintado com uma tonalidade esverdeada. Há um bloco na esquerda também pintado de amarelo. Eu estou segurando um lápis, como se estivesse escrevendo. O sorriso descobre dois grandes dentes de coelho e os olhos estão espremidos pela luminosidade difusa do dia nublado. Essa foto foi uma das inspirações poéticas do “Bailei na Curva”. Tentei que cada um do grupo encontra-se a sua. Mas alguns eram de épocas diferentes e outro nem mesmo tinham tirado a foto. A solução do Geraldo foi produzir as fotos. Nos encontramos no Estúdio de Fotografia do Luiz Antonio Guerreiro na Av. Getúlio Vargas. Era tarde da noite, após o ensaio. Recriamos a escrivaninha, o Globo, a bandeira e o clima de espanto. Depois, todos nós escrevemos um texto para ilustrar o momento.
Cláudia Accurso: eu tinha sete anos, estávamos saindo da Bolívia pelo mesmo motivo que tínhamos saído do Brasil. Eu não entendia bem. Minha mãe foi me buscar na escola e lembro que perguntei se podia levar p “Cuaderno de Dibujo”. Ela respondeu: “Outro dia”. Em seguida pedi: “E a caturrita?”.
Hermes Mancilha: eram idos de 68 quando aconteceu meu real encontro com o teatro como iluminação gerada por eles – Black Out, cenário feito por nós – Fábrica num salão paroquial, no 1º de maio com gente e com prisões meus pés alados voavam até o forno a queimar aquele texto quase duas horas black out a maior limpa, muita gente se foi para nunca mais voltar.
Cláudio Cruz: um Caco de Lua, um céu índigo blue, a Lua do Caco, a Lua da Lu, Mas Cação não sabia que a liberdade não é uma Lee, a liberdade é uma Lua, a liberdade é uma Luz, a liberdade é uma Lu.
Flávio Bicca Rocha: Quando saí de casa para morar sozinho disse: “pai, como é que eu vou comer alguém sem carro?”. Com esta lógica irrefutável alcancei meu objetivo: “Livre e de carro”. Passados alguns meses, o filho pródigo volta a morada para visitar. Só que trouxe consigo mais dois. Um na barriga.
Lúcia Serpa: Mil novecentos e sessenta e quatro. Eu estava nascendo. Nasci chorando. É que eu já estava espiando tudo o que acontecia. Todos os bailes nas curvas, toda a escuridão e eu bailando no útero, fazendo força para sair. Será que eu devia? Foi melhor assim. Estou na luta e não vou me perder por aí.
Márcia do Canto: Eu estava no primário quando me ensinaram: “O Reinos dos Pobres é o Reino dos Céus!”. Como meu pai era médico do interior e por isso pessoa muito importante, fiquei apavorada: “Será que eu vou para o Inferno?” Acho que rezando eu dou um jeitinho.
Regina Goulart: Dia do Golpe? Claro que eu me lembro. Eu tinha oito anos. Naquele dia voltei da escola num contentamento tão grande quanto só uma criança que teve suas aulas suspensas consegue sentir. Em casa encontrei meu pai com o rádio de pilha grudado no ouvido tentando saber das últimas. Eu entrei cantando, feliz da vida. Ele, como estava muito nervoso, acabou me dando a maior surra. O golpe escreveu torto por linhas retas.
Júlio César Conte: Eu tinha sete ou oito anos e meu pai me chamou para uma conversa séria. No quarto dele me apresentou um livro “Eu e o Sexo”. Eu já tinha lido o que na época se chamava “catecismos”, onde se aprendia sexo na teoria. Quando ele me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre o assunto eu rapidamente respondi que não. Curioso iniciei a leitura. Falava de uma flor que na primavera se modificava, descrevia o pecíolo, o pólen, gineceu, androceu, etc. Os últimos parágrafos eram esclarecedores: pecíolo representava o pênis, o pólen o espermatozóide e assim por diante. Depois daquela leitura sobre sexo fiquei sabendo de tudo. Sobre botânica é claro.

Usei os óculos do meu pai e ainda estava usando um bigode bastante ralo para o personagem do Professor Cid do filme Verdes Anos.

Setembro, domingo, 18.

  1. Ensaio no IPE.
Aqui a foto do meu sobrinho Gustavo Conte Moojen bem na época que escreveu a cena cinco da peça. A página 40 da primeira edição pela L&PMpor justiça a ele pertencem. Hoje ele é arquiteto, dos bons, budista, tem dois filhos que assumiu e roda pela cidade numa Harley Davidson.

A cena 5, casa da Ruth, está difícil de resolver. Regina já acertou na Dona Elvira porém a criança dela ainda não produziu o texto adequado. Escrevendo durante à tarde, me lembro de uma situação que aconteceu com o meu sobrinho.
- Eu não vou na aula – ele afirmou.
- Tu queres ficar burro? – ele argumentou.
- Eu não – como medo.
- Então vais à aula – vitoriosa.
- Estás me chamando de burro? – preparando com astúcia a jogada.
- Não entendeste bem.
- Viu... não entendi bem, então eu sou burro! – disse atacando.
- Gustavo, não escutaste direito.
- Diz que eu sou surdo, diz! – aumentando a consistência da argumentação.
- Estás fazendo confusão – minha irmã tentando se defender.
- Me chama de louco... vamos, me chama de louco! – afirmou Gustavo cada vez mais confiante.
- Gustavo, a mãe só está querendo te ajudar! – disse minha irmã, já desesperada.
- Me chama de burro, de surdo e de louco e ainda diz que quer me ajudar! – e assim ganhou a discussão.
Aproveitei o diálogo integralmente. Anos depois Gustavo, com seus dez anos de sagacidade leu o texto editado em livro. Ele veio me cobrar só que desta vez a vítima da argúcia era eu:
- Tio Júlio, a página 40 fui eu que escrevi.
Outro problema. O palco é muito estreito. Durante os ensaios no teatro percebemos que não há profundidade suficiente para desenhar uma boa caixa cênica. Surgiu então a idéia de colocamos um avanço no palco.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

1983

Setembro, 9.

  1. Comercial em Cruz Alta.

Marília Rossi e eu viajamos durante boa parte da noite. Chegamos exaustos e fomos direto para o estúdio. O texto era péssimo. Eu tinha que fazer um tipo “Zé Bonitinho” só que não combinava a idéia deste personagem com as falas. Não havia maquiador e eu não levei nada. A Marília ainda levou seu kit de maquiagem. Eles não tinham equipamento de luz adequado, nem ilha de edição o que obrigava o comercial a ser gravado como se fosse ao vivo. Tomada única. Começo ao fim, sem erro. Todos sabem que erros sempre acontecem durante gravações e são editados. Não tínhamos este recurso. Isso nos custou quase dez horas de gravação, pois quando não era eu quem errava o texto, a Marília esquecia uma fala e quando nós dois acertávamos, a luz ou a câmera falhavam. Enfim, valeria a pena se pagassem corretamente e era o que eu ansiava. Eles finalmente aprovaram o VT e voltamos para Porto Alegre ainda naquele inicio de noite. Na hora de receber o dinheiro, veio uma proposta indecente. O VT não foi aprovado pelo cliente e eles pagariam metade à vista ou teríamos que gravar de novo. Aceitei o dinheiro mesmo sabendo que o comercial fora aprovado e que estava veiculando no interior. O início da participação de artistas gaúchos na publicidade foi marcado por vários eventos deste tipo. Demoraram anos para que um certo profissionalismo acontecesse.
Durante toda a viagem e toda a gravação Marília e eu não falamos nenhuma vez sobre a sua saída do Bailei na Curva.

Setembro, 12.




  1. Ensaio no Teatro do IPE. (Resolver a crise da Regina)
  2. Falar com a Lúcia para ir às Lojas Brasileiras conseguir tecidos.
  3. Reunião com o Geraldo (manhã): óculos / 6 camisetas com a letra A / capacete.
  4. Reunião com o Régis (tarde); patrocínio.

Regina não está bem. Como diretor esgotara minhas ferramentas. Busquei em minha mente experiências anteriores onde me defrontava com problemas semelhantes. Lembrei de uma situação com a Marília durante a temporada do “Não Pensa Muito”. Ela estava num momento muito difícil da sua vida e estava muito a fim de arrumar uma briga comigo. Precisava de um pretexto para sair da peça e eu já percebera seu estado limite. Chegou no teatro mancando, com dor no pé. Colocou uma atadura e fez todas as cenas mancando. Ostensivamente. E em todos os personagens. O elenco se revoltou. Queria que eu brigasse com a Marília, desse um esporo, mandasse ela embora. Eu estava imobilizado. Não podia falar pois era o que era queria que eu fizesse. Sai do teatro no meio da apresentação, fui até uma farmácia e comprei Gelol. Entrei no camarim e disse vou te dizer uma coisa como diretor:
- Passa Gelol e não manca mais em cena! – Dessa forma aliviava a dor e a tensão.
Com a Regina estava no mesmo impasse. Ela reagia frente às exigências do trabalho com muito mau humor, puxava o clima pra baixo. Liguei para uma colega da medicina, Dra. Lizete Pessin que estava atendendo no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Marquei hora para a Regina. Às vezes um diretor tem que realizar manobras não convencionais para dirigir uma peça de teatro.
Regina melhorou bastante, mas ainda argumentava e a cena da D. Elvira com a Ana estava com muitos problemas. Insistia em fazer do jeito dela. Para mim a personagem precisa ter um pouco mais de dignidade. No teatro, a que a gente quer mostrar, tem que esconder. O dessa forma, o público tem a sensação de arrancar do ator uma emoção transcendente. Regina exagerava criando um clima piegas. Mandei todo mundo sair da sala. Ficamos eu, ela e a Claudia. Regina seguia falando que não sentia a personagem do modo que eu lhe falava, que sua D. Elvira era outra. Claudia, se irritou:
- Mas que personagem tu estas falando. Nem sabe o texto de cor. Cada dia tu faz de um jeito. Faz o que o Júlio está falando, porra! Quem tu pensa que é, a Fernanda Montenegro?
Regina respirou fundo. Os argumentos que eram tão eficientes contra a direção se desmontaram na relação colateral. O ponto de vista de outra atriz devolveu a lucidez e ela cedeu. A Dona Elvira da Regina ficou maravilhosa.
Depois do ensaio procuro Claudia. Ela se desculpa dizendo que não deveria ter falado daquele jeito. Eu lhe agradeço. Ela disse exatamente o que eu deveria ter dito, mas estava com dificuldade de me impor.



O bailarino e ator Alexander Goudnov, vilão do Duro de Matar 1, cujo cachê foi desviado para o Bailei na Curva por habilidade do Geraldo Lopes e sensibilidade do Paulo Amorim.

Reunião com o Régis Conte. Como irmão mais velho e bom negociante e administrador, sempre esteve ligado a projetos empresariais junto com meu pai. Tiveram vários negócios em comum. Naquele momento Régis era o Diretor da Conte S/A Máquinas Agrícolas que tinha uma representação da Valmet. Tratores não combinavam nada com cultura. Pelo menos nesta época, mesmo assim foi falar com ele. Explanei o projeto da peça e ele na hora fechou o patrocínio. Ele ainda quis me ajudar mais. Imaginou que Geraldo Lopes teria a porcentagem como produtor e me sugeriu que eu ficasse com o dinheiro da porcentagem e contratasse a Opus pagando um preço fixo. A intenção dele era ajudar o irmão menor que se encontra em múltiplas enrascadas financeiras. Não aceitei. Pensava que se cada um se sentisse integrado no trabalho teríamos um resultado mais harmônico. O grupo estava acima de tudo e o Geraldo era do grupo. Preferi dispor de todo o patrocínio para o espetáculo. Com certeza o investimento desta maneira traria um retorno maior a para mais gente. Meu irmão Régis Conte foi então o primeiro patrocinador do Bailei na Curva. Como o dinheiro fizemos a programação gráfica, a divulgação e uma pequena mídia de jornal e TV. O Geraldo criou uma frase para o programa. Valmet, “a mente humana é uma terra fértil, a arte, seu melhor fruto”. Ele me mostrou entusiasmado. O Geraldo conseguiu ainda outro patrocínio. A Opus estava bancando a vinda o bailarino Alexander Goudnov que faria uma rápida temporada em Porto Alegre. Era uma atração internacional, um sucesso mais do que garantido. O evento tinha apoio financeiro e oficial. Geraldo convenceu o Subsecretário de Cultura da SEC/RS, Joaquim Paulo de Almeida Amorim, a dividir o dinheiro do Goudnov com o Bailei na Curva. Sempre que eu vejo as reprises do Duro de Matar eu agradeço ao bandido do filme, que sem saber, cedeu metade do seu patrocínio para uma peça gaúcha. Como o orçamento foi feita uma tiragem de mil e quinhentos programas. Eu achei muito. Se tivéssemos umas mil pessoas em toda a temporada, para nós, já seria muito. Felizmente eu estava errado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

1983


Setembro, 6.


  • Telefonar para o Janjão
  • Marquinho: Geraldo.
  • Ensaio no Teatro do IPE

O Janjão Freire foi corredor de automóveis, corredor de maratona e diretor da Taurus. Era também cunhado do meu irmão. Por isso, na hora do aperto, liguei para ele para ver a possibilidade de patrocínio. Ele tentara me colocar num comercial da Taurus sobre um novo tipo de chave de fenda que possuía um imã facilitando o contato com o parafuso. Efeito carimbador maluco. Não deu certo, mas nesta tentativa prévia, ficara sabendo que o Taurus estava querendo mudar a imagem de uma fábrica demasiadamente marcada pela confecção de armas. Falei com o Geraldo e pensamos em propor algo para a Taurus no sentido de oferecer um marketing cultural e aliviar a pressão negativa sobre a marca. Marcamos uma reunião no Bar do IAB, um tanto informal, e avisei o Flávio Bicca que estaríamos lá. Ele insistiu em participar. Geraldo Lopes e Janjão Freire frente a frente na mesa e eu e Flávio nas adjacências. O negócio era entre empresários e nós éramos neófitos, cabia observar mais do que agir. Geraldo falou um pouco sobre o significado da associação entre a marca de uma empresa e o produto cultural. Janjão falou do seu interesse nesta associação. Eu já imaginei o dinheiro entrando para fazer uma bela estréia, com cartaz, programação gráfica e divulgação. Foi aí que o Flávio falou:
- E qual é a posição da empresa quanto à venda de armas em Moçambique?
Silêncio no tribunal. Geraldo virou um pimentão, literalmente, não é figura de linguagem. Quem conhece o Geraldo sabe que ele quando se irrita ou se constrange ou ri fica totalmente vermelho. Pois naquela hora ficou vermelho de raiva. Eu tive vontade de comprar uma arma da Taurus e dar um tiro no Bicca. Janjão foi o mais cordial. Olhou para o Bicca, falou algumas coisas banais, pediu a conta e saiu. Fim do patrocínio. Depois comentando com o grupo, a Claudia Acursso, Lúcia Serpa, o Hermes Mancilha e o Cláudio Cruz também se manifestaram contra a idéia de uma peça que fazia uma crítica a ditadura do regime militar, ao estado de exceção e a tortura, associar-se a uma fábrica de armas. Eles tinham razão. Ainda abem que o Flávio fez aquela besteira, senão eu teria feito uma besteira maior. Teria aceitado para o Bailei na Curva um patrocínio de uma marca de arma de fogo.
Seria um tiro pela culatra.

A origem do bonequinho do Bailei

Na tarde me encontrei com o Marquinho na Getúlio Vargas. Ele trabalhava numa agência de publicidade e fazia alguns free para a Opus. Como não podia me receber na agência, nos falamos na calçada. Ele já tinha um brife, mas tinha dúvidas. Conversamos, falei que minha idéia era que a peça começasse como se fosse uma peça infantil, que tivesse uma ingenuidade inicial para depois evoluir para um drama. Era essencial uma leveza que relaxasse o público e ao mesmo tempo prenunciasse o trágico. Marquinho era uma pessoa maravilhosa, um metro e pouco, muito astral, falava alongando as vogais e melando as palavras. Quase bicho grilo e desse jeito mesmo ele falou:
- Mas afinaaaaal, o que tu queeeer?
Eu estava cansado, uma porção de decisões. Levantei os braços, encolhi os ombros e devo ter feito uma cara de desiludido.

Ele falou:
- Quem sabe um bonequinho, assim, com esta expressão? – e encolheu os olhos, comprimiu os olhos e abriu os braços me imitando.
Olhei para ele, ali no meio da Getúlio, final da tarde, e vi no corpo deleo aquilo que ele viu no meu: o bonequinho do Bailei.

Ensaiamos a noite até tarde, pois no dia seguinte era feriado. Durante o ensaio já tinhamos o bonequinho do Bailei, pelo menos na cabeça do Marquinho.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

1983







Agosto, 26.


  • Sobre o conceito de transferência.

Na aula de psiquiatria na Divisão Melanie Klein do Hospital São Pedro, a discussão foi sobre transferência. Como se sabe transferência é um fenômeno descoberto por Freud no qual o paciente projeta na figura do analista suas relações mais primitivas. Este fonômeno ganhou importância pois é justamente por causa dele que o analista tem ferramentas para tratamento de doenças psíquicas, uma vez que ao atualizar sobre o analista vínculos passados e primitivos, cria-se as condições para alterar padrões antigos e possibilitar novas repostas a antigos problemas. Ou seja, cria-se as condições de aprender com a experiência.
Na segunda parte da aula foi de supervisões. A paciente do Fábio, um colega de turma, parou o tratamento. Chegamos a conclusão que foi um abandono. Fábio sustentou até o fim que foi uma alta e bem sucedida. Questões de ponto de vista. Cura em duas sessões é coisa para traumatologista. Depois, dele apresentei o caso da minha moça de olhos tristes. Relatei que ela chegara no atendimento muito assustada. Disse que achava que estava ficando louca. Perguntei porque e ela respondeu que estava me vendo em todos os lugares. Eu já imaginara que era fruto da transferência quando ela falou:
- Essa semana estava vendo TV e vi o teu rosto na cara de um monstro de uma propaganda.
Dra. Lucrecia, muito sagaz, perguntou se eu fizera mesmo a propaganda. Os colegas riram da pergunta. Só pararam quando eu disse que sim. Era eu mesmo o monstro que assombrava minha paciente. Minha sorte foi que, durante a sessão, havia dito para a paciente que de fato, fora eu que interpretara o Carimbador Maluco e que não era um montro de sua fantasia. Ela sentiu-se aliviada. Aprendi que a verdade pode ser dura, pode ser engraçada, pode ser trágica, mas é sempre verdade e por isso, mitiga o nosso sofrimento pois remete para aquilo que não pode deixar de ser. A verdade alivia. Quando dita com amor.

Graças ao mestre Freud que invetou o homem como a gente conhece hoje.


Agosto 30.


  • Reunião com Geraldo da Opus para quantificar a produção.

Eu estava muito tenso. Quantificar uma produção era a pauta da reunião. Para mim a questão era um enigma da matemática moderna: como quantificar o nada. Fazendo teatro com se fazia até então era a inveção do zero. Não havia produção, não havia dinheiro, não havia projeto mínimo de organização. Com estas premissas sentei na frente do Geraldo para aprender. Ele estabeleceu um plano mínimo para a realização de uma peça de teatro.


Anotação ao pé da página: Dinheiro da Distribuidora; Vila: Divisão Melanie Klein Geraldo Lopes – Régis C.



  • Reunião com Leisa Serpa no Teatro do IPE.

Reunião no Teatro do IPE, com Leisa Serpa, mãe da Lúcia. Ela disse que queria ativar o teatro até então usado como auditório. E logo confirmamos as datas. Nem precisei argumentar nada. E ainda por cima, conseguimos o teatro para ensaiar. Uma preciosidade que gerou frutos, pois ensaiar no ambiente de apresentação é uma raridade que só acontece quando um produção aluga ou é proprietário de uma sala de espetáculos. Descobrimos que o palco é material de trabalho do ator, como uma cama para o amante, quando mais usa, mais lhe pertence.

Foi desta forma que colocamos o Teatro do IPE no mapa da cidade.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

1983

Agosto, 23.





  • Reunião no Museu do Trabalho.


  • Carimbador maluco no Do Sul, noite.

    Reunião no Museu do Trabalho.


Apresentei o projeto do Bailei novamente, agora para a nova diretoria que tomou posse. Eles também recusaram. Ficaram me olhando como se eu estivesse pirado. Aliança Francesa nem nos recebeu e o Goethe tinha toda a pauta ocupada.
Depois que a peça estourou o diretor do Museu do Trabalho veio me propor temporada. Tinha que acreditar antes, senão não vale.
Falei com a Lúcia ela pensou no Teatro do IPE. Não tem tradição, mas se não tiver outro... Sua mãe, Leisa Serpa ocupava um cargo no IPÊ e tinha idéia de utilizar o teatro para mais coisas do que seminários e conferências. Lúcia e eu falamos com ela. Na pior das hipóteses tínhamos teatro.
Acabamos optando pelo IPÊ depois de saber que não havíamos ganhado temporada no Teatro Renascença. Perdemos o edital para o Mario Masseti, um diretor paulista que estava com muitos trabalhos interessantes em Porto Alegre. Um dia me ligaram da administração do Centro Municipal de Cultura para que eu fosse buscar o projeto. Cheguei lá e o projeto não havia passado pelo protocolo geral e não havia sequer entrado no pleito de ocupação. Um funcionário da Opus, desabituado com a burocracia perdeu o prazo e entregou o projeto direto no teatro. Nem entrou em julgamento. Ficamos esperando um resultado que não tinha chance de acontecer. Mas, obviamente o funcionário não avisou ninguém. O nome dele era Átila, também conhecido nas internas como Átila, o rei dos burros. Trabalha na Opus até hoje é um cara legal.

Carimbador maluco no Do Sul, noite.



Gravei um comercial para TV com direção de Flávia Moraes. Uma campanha para a rede de Supermercados Do Sul. Passamos a madrugada no Supermercado na esquina da Rua São Vicente com a Av. Protásio Alves. O personagem era inspirado na música de Raul Seixas e fez muito sucesso. Eu usava uma maquiagem espessa, grossa, uma espécie de máscara branca, um chapéu coco e um carimbo gigantesco. Eu, quer dizer, o Carimbador Maluco entrava no supermercado de madrugada e remarcava todos os preços. Carimbava tudo o que via pela frente e culmina a perfomance com um carimbo na câmera. No final do VT eu atravessava um grande corredor vazio e no fundo dava dois pulos e no ar batia as solas da botina. Ficou com marca registrada do Carimbador Maluco. O comercial entrou no ar com uma mídia fantástica. Concentrando tudo na segunda feira para a promoção na terça, a veiculação foi de cento e vinte inserções somando todos os canais. Isso significou que a mídia no dia do lançamento da campanha do Carimbador Maluco, somando todos as veiculações em todos os canais, atingia o total de duas horas no ar. O tempo de um filme de longa-metragem. Isso teria conseqüências.

Agosto, 24.





  • Elenco da peça fechado: Cláudia, Cláudio, Flávio, Regina, Hermes, Márcia, Júlio & Lúcia.

    Com alegria escrevi que finalmente o elenco estava fechado: Cláudio, ariano, 29 anos, depois eu, Júlio, 28. Leão; Regina, 27, Sagitário; Flávio, 26, Peixes; Claudia, 24, Libra; Hermes, 23, Escorpião; Márcia, 22, Aquário; Lúcia, 18, Capricórnio. Pensava em fazer o mapa astral da peça. Faltava o dia e a hora do nascimento. Achava esse negócio de signos uma bobagem, mas... Pensamento mágico vale na reta final dos ensaios. São tantas variantes e a maiorias delas não se tem controle.
    Por isso No creo em las bruxas...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

1983


Agosto, 8.


  • EPATUR
  • Verdes Anos.
  • Psiquiatria.

    EPATUR
    Telefonei para EPATUR para conseguir espaço para apresentação da peça. Um espaço alternativo. No desespero vale qualquer lugar para apresentar o trabalho, mas não deu em nada.
    Verdes Anos.
    A cidade já se mobiliza para o novo filme que esta sendo feito. Um longa metragem em 35 milímetros. Fui convidado a atuar. Participei de uma reunião de produção num sobrado antigo no Bairro Rio Branco. Li as primeiras páginas do roteiro do filme Verdes Anos e fiquei apavorado. Escrito por Giba Assis Brasil, Álvaro Teixeira, Carlos Gerbase e o Alex Sernambi o roteiro era praticamente igual ao “Bailei na Curva”. Ainda bem que a produtora não teve condições de realizar tal empreendimento. Faltava dinheiro para achar atores infantis que sejam parecidos com os atores adultos. Resultado que a história dos Verdes Anos abrange um pedaço da história contada pelo “Bailei na Curva”. De qualquer modo filme demora e eu iria estrear antes do que eles.
    Este fato vai ao encontro de uma concepção de que as idéias não têm dono. Flutuam em suspensão, pairam no ar a espera de uma mente disponível que lhes dê guarida. A originalidade esta na disposição para viver algo que se realiza além e aquém da nossa vontade. Este foi apenas mais um dos inúmeros tratamentos de choque impostos pela vida ao meu narcisismo.

Psiquiatria.
Aula de Psiquiatria, supervisão coletiva. Um colega, Fábio, vai fazer Traumatologia e por isso, Psiquiatria é uma perda de tempo na opinião dele. Relata o caso que atende. Uma mulher envolvida em muitas confusões profissionais, noiva de um alcoolista e que não tem prazer nas relações sexuais. Na orientação é falado que provavelmente essa mulher seja um histérica que tem questões relacionada com a sexualidade. Fábio, com desenvoltura, diz que já havia feito este diagnóstico e que já resolvera o problema. Disse para a paciente que ela tinha que se organizar e deu como exemplo, que ela não devia colocar os sapatos na gaveta das calcinhas. Risos contidos de todos, inclusive da Dra. Lucrecia.



Agosto 9.


  • Vila Cuzeiro, Febem às 9 horas.

  • Não resisto, vou para o palco.

Vila Cuzeiro, Febem às 9 horas.
No trabalho de Medicina Preventiva nossa turma teve que fazer uma pesquisa de campo. Verificar as necessidade da Vila e propor soluções. O problema da vila era os ratos. Uma quantidade absurda tomava as casas. Um menino dormiu e deve ter regurgitado um pouco de leite.Atraídos pelo cheiro do leite, atacaram o menino que passava mal no hospital. Imaginei o Flautista de Amelin atraindo toda a troupe a os afogando no Guaíba. Não funcionava assim. A solução imediata seria uma lixeira. Durante o semestre tivemos muitas conversas com a Associação e eles já estavam agilizando a construção da lixeira. Fotografei o local e no final do semestre fotografei a lixeira. Tiramos A na matéria. Três meses depois de pronta, porém, a lixeira foi demolida e o material usado para mais um barraco clandestino. Tristes prioridades se impunham.

Não resisto, vou para o palco.
Claudia sugere o meu nome para entrar no palco. Eu havia jurado que desta vez seria apenas diretor. Mas a peça estava tão bonita, tudo tão certo, no lugar. Porém, um problema sério de mudança de roupa e distribuição dos personagens nas cenas iniciais obrigava a presença de outro ator. Pensamos em vários, mas sem consenso. Foi aí que a Claudia sugeriu que eu entrasse em cena. Não precisava muito, eu já estava com um pé que era um leque para subir no palco. Mesmo assim me contive. Peguei os papéis menores por opção e porque não queria me arriscar. Não me considerava bom, sentia que eu era “esforçado”. Muitos anos teriam que se passar, maioria deles dirigindo grandes atores para que no final, eu me sentisse a vontade no palco. Para que eu me sentisse um ator em cena.

Agosto, 10.

  • Filmagens.
  • Supervisão do caso da moça de olhos tristes.
  • Uma anotação.

    Filmagens.
    Nos Verde Anos fazia o professor de educação física, Cid. Usei um abrigo da Adidas azul marinho com três listas. O meu personagem usava um bigode e era assediado sexualmente por uma aluna que decidira que não seria mais virgem. O professor Cid era o felizardo escolhido para realizar tal proeza. Era uma idéia interessante porque invertia o fluxo dos assédios e fragilizava o poder estabelecido. Fiz a minha primeira cena em longa metragem na entrada do Colégio Cruzeiro do Sul. Não tinha noção onde estava a câmera nem como fazer. Quando me falaram que valeu, fiquei sem saber o que foi mesmo que valeu. Tive mais dois dias de filmagens. Um pelas ruas do bairro correndo e aceitando carona da aluna, outro dando uns beijos numas ruínas escondidas. O filme terminou para mim numa locação em São Leopoldo quando finalmente eu resolvia transar com a aluna feminista interpretada pela Xala Filipi.

Elipse 2008

O filme VERDES ANOS se tornou um cult depois da premiação no Festival de Cinema de Gramado. Circulou o Rio Grande do Sul e um pouco do Brasil também. Porém penetrou imensamente na crítica cinematográfica brasileira. Recentemente Maria do Rosário Caetano, depois de assistir Netto e o Domador de Cavalo no qual faço um personagem, o Barão de Aceguá, veio me perguntar se eu havia mesmo feito o Verdes Anos. Assim com curta que fiz na mesma época, Interlúdio, ficaram para a posteridade, embora em vida não tiveram nem um, nem outro o reconhecimento e uma entrada trinfual no meanstream. Estranho o que tempo faz com o cinema e não pode fazer pelo teatro. No teatro tudo é radicalmente imediato. Ou se ve, usifrui, vivencia no momento ou se perdeu o bonde da história.

Supervisão do caso da moça de olhos tristes.
Supervisionei o caso da minha paciente, a moça de olhos tristes. Relatei os conteúdos da sessão. Lucrecia de imediato desenhou o quadro. A minha paciente perdera o pai há alguns anos. Veio se tratar para elaborar o seu luto que ainda impede que tenha uma vida saudável. Pensei comigo que tudo na vida tem a ver com algum luto e que grande questão é o que fazer com a dor que deveras se sente.

Uma anotação.
Ao pé da página estava escrito: Renascença – teatro as terças-feiras.
Foi uma das alternativas para apresentação da peça, meio de semana. Chegamos a discutir esta possibilidade, mas decidimos que somente em último caso, pois não havia tradição para fazer teatro em meio da semana. Regina vai marcar mais uma reunião com o pessoal do Teatro do Museu do Trabalho. Torquato vai falar com a Haideé para a Reitoria. Regina vai tentar também a Aliança Francesa e a Claudia Acursso o Teatrinho do Instituto Goethe.

A busca por um teatro ocupou para a estréia do Bailei ocupou meses de produção, reuniões e conchavos infrutíferos. Se a peça não tivesse acontecido, tudo não passaria de uma rotina. Mas depois muita gente se arrependeu dos nãos distribuidos. Foi uma lição para o resto da minha vida. Escuto todos que me procuram, por mais estapafúrdia que seja a proposta, escuto, tento descobrir o que está acontecendo no íntimo pois nunca sei quando estou na frente de uma idéia genial ou de um delírio. Mas esta é a questão que toda a humanidade tem que lidar, mais cedo ou mais tarde e para o resto da vida.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008




Agosto, 3.


  • Ensaio.

    Passamos bom tempo discutindo quem entraria na peça no lugar do Néco. Um drama interno. Todo o mundo dando palpite e ninguém escutando ninguém. Aí surgiu o nome do Claudio Cruz que estava ensaiando Esperando Godot. Pensei que um diretor por perto me ajudaria nos meus momentos de incerteza. Fui até a Reitoria onde Cláudio Cruz ensaiava. Convidei. Ele estava cansado de dirigir, queria respirar um pouco o ar do palco e viver um tempo com ator. Para surpresa geral ele aceitou naquela mesma noite.



Atendi a minha primeira paciente. Uma moça bonita. Cabelo curto, livros debaixo do braço. Estuda para o vestibular. O seu olhar é sem vida. Ela fala muitas coisas e eu não entendo nada. Sinto uma tristeza muito grande. Anoto no prontuário os dados pessoais. Nome, endereço, filiação. A tristeza eu guardo comigo.

Agosto 4.



  • Roberto da Arco Filmes. Possibilidade de fazer um comercial.

    Quando o Cláudio Cruz entrou na sala de ensaios, uma boa parte do texto já estava pronto. Isso não diminuiu sua importância, pois como ele era diretor e bem mais experiente do que eu. Ao longo do processo, muitas vezes recorri a ele para tirar dúvidas. Ele entrou direto nos ensaios e se integrou muito bem ao grupo. Só havia um problema, Cláudio, ao contrário do Néco, não era nenhum galã. E eu já tinha cenas em que todas as gurias queriam o Néco. Tivemos que adaptar. No meio do ensaio alguém trocou o nome de Néco por Caco. Todos acharam graça. E eu deixei. Tinha tudo a ver.

Mesmo assim ainda faltava gente para realizar uma quantidade absurda de troca de roupas e de personagens. Precisava de mais um ator e uma atriz. Cláudio resolveu uma parte do problema. Chamamos a Lúcia que estava fazendo produção executiva para entrar em cena. Ela herdou os personagens criados pela Márcia entre eles a Lulu. Márcia não queria que eu tirasse aquele personagem dela. Mas tive que optar. A Gabriela e a Lulu tinham muitas coisas parecidas, um espírito moleque. A Márcia celebrizou a Gabriela. Nunca houve uma Gabriela como a dela. E a Lúcia, desenvolveu a Lulu a ponto dos personagens não parecerem advirem da mesma origem. Ainda faltava um ator.


Desenhava-se dentro de mim o eterno anseio de estar em cena. Uma sina.

Agosto 5.




    A foto é do lançamento de meu primeiro livro de contos, uma obra coletiva que o Abrão Slavutzki compareceu para dar o seu prestigioso apoio.

  • Alta da análise com Abrão.

    Nos últimos tempos de análise o dinheiro que meu pai destinava para o tratamento se encerrara e não tinha mais nada para vender. Tivemos que organizar uma alta. Sai aos poucos do divã e passei para o frente a frente. Neste período houve um fortalecimento da minha auto-estima. Ao contrário do que imaginava quando analisara as minhas primeiras experiências de vida onde, em virtude de uma grave hemorragia de minha mãe na sala de parto, na qual fui deixado durante horas à mercê da sorte enquanto os médicos tentavam salvar a vida da minha mãe, que de alguma forma eu valia a pena. Esta frase fecha uma das cenas finais do Bailei. Nos despedimos formalmente. Bem diverso do segundo período de análise quando eu já estava em formação. Nesta segunda oportunidade houve um agradecimento mútuo e um abraço carinho. Existem despedidas com certas pessoas que são sempre dão idéias de que estamos frente a um recomeço. A aceleração criativa produzida pelo confronto das personalidades gera frutos além da capacidade do par. Repito: o que a gente cria e sempre melhor do que aquilo que a gente é. E por isso, por nossos textos, nossas peças, nossos filhos, nosso trabalho, pelos abrigos e laços que construímos ao longo da vida, é que se passa toda a nossa evolução. E as experiências vividas acabam unindo as pessoas numa sociedade invisível, cuja única regra é manter a vida andando e intensa.

Agosto 6, sábado.
  • Curso como pessoal da CEF de manhã.


  • E ensaio na ABIPEX à tarde.

    A sala da ABIPEX era um muquiço quase na esquina da Rua Riachuelo com a Caldas Junior. O mofo da sala e sol das duas da tarde me puseram para a rua. Sentei me no cordão da calçada da Riachuelo esperando o pessoal. Ensaio sábado é foda. Todo o mundo se atrasa. Eu só não me atraso porque sou o diretor e diretor tem que dar exemplo. O pessoal foi chegando aos poucos, cheios de preguiça no corpo, digestão em processo e um pouco de ressaca. Entrar numa sala de ensaio é um exercício semelhante a começar a escrever um romance ou se preparar para uma palestra. Dá um medo e uma preguiça. É o pavor da folha em branco. Quando todo o pessoal chegou ainda resistimos um pouco mais desfrutando o calor delicado do sol de inverno. Entramos na sala e a umidade e o frio persistente nos deprimiu. Lá fora uma bela tarde de sol nos convidando. Alguém falou:
    - Vamos ensaiar na no parque.
    Já havia tido este tipo de experiência. Várias cenas do “Não Pensa” foram ensaiadas na Redenção e “O Reino do Sol” no Jardim Botânico. É muito interessante este tipo de ensaio pois na época nos remetia a performances urbanas e Porto Alegre ainda não era uma cidade com um teatro de rua tão forte como é hoje. Além disso, o caráter de subversão sempre atrai o teatreiro.
    Resolvemos ir até a Usina do Gasômetro. Começamos o ensaio depois de algum tempo a tomar sol, deitados na grama. Neste grande abraço grupal foi que surgiu, entre uma brincadeira e outra a idéia de que a personagem da carona fosse a Lu. A cena do carona já era um grande problema. De início improvisamos um acampamento em Garopaba. A viagem, a barraca, o macarrão com molho de sardinha, o saco de dormir, quem deita com quem. A Regina ensaiou vários dias uma música da Janis Joplin que eu pedi para ela cantar em cena. Todas legais, mas não foram aproveitadas, pois em que pese à vitalidade, estancava o ritmo do espetáculo. Única definição era que seria uma cena para desenvolver a história do Caco. O texto provisório tinha cinco páginas e isso corresponde há quase quinze minutos. Com o tempo, a cena foi cortada, uma partezinha aqui, outra ali, parte por parte se esvaindo até virar a cena da carona. Dois páginas de texto enxuto, preciso e cirurgico. Foi no meio desta orgia da preguiça, deitados na grama, perto da Usina que surgiu a idéia do Caco reencontrar com a Lu. Aquela guriazianha pentelha da Reunião Dançante viraria uma mulher muito gostosa na estrada para Santa Catarina. Este fechamento de cena caiu do céu como uma maçã de Newton. Justamente quando estávamos todos dormindo, viajando, devaneado. O sonho inventa a vida e somos feitos desta mesma matéria como o bardo inglês nos ensinou.
    Começamos o ensaio desta forma, meio sério, meio brincado, mais celebrando o sol e a vida do que preocupados com a peça. Balei já estava em estado adiantado de constituição e por isso relaxamos.
Dois mendigos e um ciclista pararam para nos assistir. E pelas risadas percebi que algo vital e importante estava sendo produzido. Eles foram, sem saber sequer o nome da peça, o primeiro público da Bailei na Curva.





Agosto, domingo, 7.

  • Livre.

    Anotação ao pé da página: Teofilina Bermácea. Aerolin Spay. Aerolin Solução.
    (Será que era para mim ou para o Pedro?)

sábado, 31 de maio de 2008

Julho, 28.
  1. Libertadores da América.
  2. Não dei curso.

Suspendi a aula para o pessoal da Caixa Econômica para ver o jogo do Grêmio contra o Penharol. Meus vizinhos, colorados, estavam entusiasmados. Grêmio saiu na frente, gol de Caio, e não resisti, fui para a janela gritar. No segundo tempo o centro-avante Morena empatou. Gritaria no prédio da frente. Perto do fim, Renato faz embaixadas quase no córner e cruza a bola. A bola é um arco íris atravessando a noite. A parábola termina na cabeça do César. Grêmio 2 x 1. Campeão da Copa Libertadores da América. Fui para a rua festejar. A janela do prédio da frente estava com a persiana fechada e não se percebia nenhum movimento. Nenhum sinal de vida inteligente no planeta vizinho.

Julho, 29.
  1. Curso na Caixa.

Recuperei o dia perdido. O grupo começa a pensar em montar uma peça. Plínio Marcos é uma das sugestões.

Agosto, 1.
  1. Dinheiro na Distribuidora. Salário-ajuda do meu Pai.
  2. Psiquiatria no São Pedro, hospício.
  3. Ensaios.

O mês de agosto trazia anúncios da estréia de Calabar, de Chico Buaque de Hollanda no Teatro Presidente. O texto finalmente liberado pela censura, tinha direção de Dilmar Messias. Enquanto isso, Edison Nequete, veterano ator de teatro, tinha uma placa em sua homenagem colocada no Theatro São Pedro. A Zero Hora noticiou casos do Sarcoma de Kaposi característica de uma possível Síndrome Gay que tivera suas primeiras vítimas em 1979. Carlinhos Hartlieb estava em cartaz no Rocket 88 e os longa-metragem em 35mm, Verdes Anos e Me Beija entravam em pré-produção. Discutia-se a impropriedade para menores de dez anos assistirem a peça do grupo Cem Modos, um teatro de bonecos e que acabou recebendo o prêmio de Melhor Espetáculo de 83, no Centro Franco-Brasileiro. O filme Danton de A. Wajda entra em cartaz no Cine Astor. Enquanto isso eu começava as aulas de psiquiatria no São Pedro, o Hospital. Divisão Melanie Klein.

Tenho que comprar o Kaplan – Livro de Psiquiatria, custa muito caro e só tem em espanhol. Tive contato com os mestres da psiquiatria e psicanálise do Rio Grande do Sul. Um deles chegou de gabardine escura, chapéu de feltro e parecia um galã de filme francês. Com charme, mas sempre um pouco além das medidas. Pensei que não é só no teatro que há vedetes, nem a vaidade é privilégio de atores.

Fiz o cálculo: durante as férias tivemos dezoito dias de ensaio. Alguns dias em dois turnos de ensaios e um para escrever. Foi bastante. Dois terços da peça se definiram neste mês.

O encarte do jornal Zero Hora trazia o pôster do Hugo de Leon capitão da vitória. Sangue correndo pela testa. Todos pensaram que foi a bravura do jogo. Anos depois se decobriu que ele colocou a taça sobre a cabeça e lacerou a testa. Mas a versão da bravura é muito melhor.

Agosto, 2.
  1. Psiquiatria.
  2. Ensaio.
  3. Medicina Preventiva

Psiquiatria.

Aula com a Dra. Lucrecia Saslavky. Tive sorte pois ela é uma pessoa muito afetiva e me acolheu muito bem. Neste dia fico sabendo que terei que atender uma paciente durante todo o semestre. Um frio na barriga.

Ensaio.

Terminaram as férias. O esquema de ensaios em dois turnos e um turno para escrever acabou. Todos retornam a suas tarefas, aulas, trabalhos, vida normal.

Néco chega no ensaio e diz que vai sair da peça. Depois de um período de produção incrível onde setenta por cento do texto foi concebido, o cara desiste. É foda, parece cena do “Não Pensa Muito Que Dói”. Fico muito irritado. Primeiro a Marília, depois o Torquato e agora o Néco. Eu sabia que ele recém saíra de um relacionamento longo e por isso, para se refazer, entrara no teatro. O fato de estar fazendo a peça e ter sido muito valorizado na escola me deu a idéia errônea de que ele seguiria a carreira. Como era muito bonito, transava com todo o mundo e isso elevou sua auto-estima na escola. Sem falar que ele aceitara com muita alegria fazer a peça. Ensaiou três meses, transou com quem queria e foi embora. Acho que ele nunca acreditou que Bailei na Curva um dia subisse ao palco. Em alguns momentos de delírio, imaginava o Néco como aquele baterista dos Beatles que saiu da banda antes dela fazer sucesso. Que eu saiba nunca mais fez teatro.

Medicina Preventiva

Trabalho de Preventiva: visitar a Vila Cruzeiro, fazer uma lista de problemas e encontrar uma solução comunitária. Como? De repente o mundo ficou preto-e-branco. Minha preocupação era achar alguém para o lugar do Néco.

sábado, 17 de maio de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (18)

Como não achei nenhuma foto coloquei esta em que estamos festejando a minha formatura do DAD, festejo ocorrido no antológico Bar do IAB.

Julho, 24.

  1. Meu aniversário e aniversário de casamento.
  2. Festejamos.

Um ano antes no Petropole Tênis Clube casara com a Márcia do Canto. Éramos jovens e cheios de saúde e o manto negro da tragédia já armava seus fios invisíveis, mas nós não sabíamos. A festa foi dentro de uma perspectiva informal. Não houve casamento no religioso apesar das comedidas insistências de meus pais. Eles, no entanto, me respeitaram. O aceite se efetivou. Pagaram a festa. Muitos amigos presentes, uma cerimônia eclética. Simpatizantes da direita e da esquerda na mesma mesa, o que comprova a minha tese que se houver comida, música e bebida a disputa ideológica cede lugar para a solidariedade e a confraternização. Pelo menos, foi o que pensei quando vi sentados na mesa uma multiplicidade de representantes de partidos políticos e concepções de vida tão opostos.

Nunca entendi porque resolvi casar no dia do meu aniversário.

Durante a análise, este dia sempre trazia material inusitado e intenso. No dia que eu nasci, minha mãe quase morreu. Uma hemorragia difícil de estancar fez com que ela entrasse em choque devido à perda de sangue. Ela pensou que iria morrer e começou a cantar uma canção saudosa e melancólica. As enfermeiras comovidas saiam da sala para chorar. Eu do meu lado, recém nascido, paradoxalmente não chorei. Fiquei numa mesa de atendimento ao lado de minha mãe, num abandono secular, desde a hora que nasci, às sete horas da manhã de um domingo de 1955, até o final da manhã, quando uma minha tia compadecida com meu desamparo, me deu o primeiro banho passando das onze horas daquela manhã dominical. Surpreende-me até hoje o fato de não chorar, nem ao mesno dormir como costuma acontecer com bebês nestes momentos iniciais da vida. Imagino que, com o rudimento mental que tinha a minha disposição, devo ter inventado alguma coisa para me manter vivo durante àquele lapso subjetivamente milenar de tempo. Gosto de me ver como se estivesse jogando com quase pensamentos para dar conta das fantásticas impressões sensoriais e com a brutal realidade que me cercava e que esqueci. Por isso, até hoje, quando me acossam momentos de vazio assustador, eu logo trato de preencher com mind games, pois guardo a fantasia que foi naquele abandono primordial que resolvi ser artista e criar algo para que a realidade não me sugasse para o buraco negro absoluto. Talvez seja este o nosso desafio.

A vida não existe, tem que ser inventada.

Na noite seguinte comunicamos aos nossos pais que eles seriam avós. Fingiram surpresa, mas tudo indicava que eles já estivessem percebido. Antes de dormir, Márcia sentiu pela primeira vez os movimentos do Pedro dentro da barriga. Na época, ela descreveu como uma batida de asas de borboleta.

A noite veio com uma pequena confraternização no apartamento da Getúlio. As duas famílias estavam presentes. As de sangre e o grupo de teatro.

Julho, 25.

  1. Teatro Presidente.

Reunião com o Jofre Miguel. O cara era todo poderoso. Administrava o Teatro Presidente, um espaço grande com mil lugares. Tentei falar com ele para conseguir uma pauta para a peça. Sabia que era uma ousadia, mas não tinha outra saída. Jofre Miguel remarcou várias vezes as reuniões até desistirmos de pleitear as datas.

Alguns anos depois numa conversa com o Gabriel, esse sim dono do teatro, falei que eu tentara datas para estrear o Bailei no Presidente. O velho Gabriel, que era tido como um ranzinza, balançou a cabeça e soltou um palavrão:

- Porra, por que não falaram comigo?

Eu quase disse que tentei, mas sabia que era apenas uma desculpa pelas inúmeras vezes que não fomos recebidos. O Teatro Presidente não foi o único teatro a recusar pauta para a estréia do “Bailei na Curva”. No Teatro do Museu do Trabalho fiquei horas tentando convencer o administrador a ceder um pauta. Ele não levou fé. Queria uma peça de projeção para marcar o teatro.

E ainda teríamos ainda um episódio com o Teatro Renascença que só fiquei sabendo muito tempo depois.



Julho, 26.

  1. Reunião com o Geraldo Lopes da Opus as 14:30 horas.
  2. Praia de Belas 2310.

Lúcia Serpa e eu fomos para a reunião com o Geraldo Lopes da Opus Promoções. Estacionamos o carro quase na esquina, muito perto do número 2310 da Praia de Belas. A Opus já era uma produtora de renome, trazia grandes nomes do cenário musical e teatro e fazia produção local dos grandes empresário brasileiros como o Marcos Lázaro e Poladian. O pulo do gato que transformou o Geraldo Lopes num produtor de prestígio nacional foi a vinda da Mercedes Sosa para Porto Alegre. Um evento inesquecível para a cultura e para a democracia. Foi a primeira vez que a cantora esteve no Brasil e a apresentação no Gigantinho lotado esteve ameaçada por grupos de ultra direita que ameaçavam explodir o ginásio de esportes. Mesmo sob explosões de efeito moral o show aconteceu e assim iniciou a trajetória da Produtora. Eu já conhecia o Geraldo. Quando atuei numa peça chamada “O Julgamento de Luculus”, e Bertold Brecht com direção de Luiz Eduardo Crescente apresentada numa sala de MARGS, o Geraldo nos deu apoio extra-oficial, pois, na época ele namorava uma das atrizes da peça. Ele conseguiu umas arquibancadas e com elas praticamente criou uma sala de espetáculo além de um sistema de divulgação inédito na produção local. Sabia do que ele tinha feito para a peça, mas não havia falado com ele até então.

Entramos na sala de espera. Não havia com esconder que estávamos constrangidos. Artistas não gostam de pedir, pelo menos na época era assim. Mas a audácia foi grande, bem maior do que a timidez e o orgulho. Este conflito resultou numa cena divertida. Entrei e vi aquele homem pequeno, atarracado, rodeado de telefones e com uma carinha simpática, sempre com um sorriso discreto entre lábios e um olhar atento. Ele silenciou dando assim a palavra para mim. Na hora de falar não saiu palavra alguma da minha boca. O ar sumiu da sala. A recuperação veio aos trancos. Comecei atrapalhado, me desculpando de tomar seu tempo. Disse que ele era muito ocupado, que tratava de produções nacionais e que nosso produto era pequeno. Além da timidez e de entrar num terreno profissional que eu não dominava, ainda percorria meu pensamento a dúvida se tínhamos de fato um produto para a Opus comercializara, pois a peça estava longe de ficar pronta. Tropecei nas palavras até que achei um adjetivo para qualificar o trabalho que me acalmou:

- Não é grande coisa, mas tem o essencial.

Essencial, que palavra salvadora. Quando esta palavra saiu dos meus lábios, o ar voltou e eu respirei pela primeira vez. Lúcia no meu lado só olhava enquanto o Geraldo escutava. Fiz uma pausa e o Geraldo falou que, ao contrário do que o pessoal pensa, ele apoiava os trabalhos locais. E que, como se fosse a coisa mais natural do mundo, disse que aceitava a produção. Eu ouvi-o falar, mas não escutei. Já recomposta e com as palvras de volta a minha boca, tomei coragem e insisti, de forma cada vez mais enfática que o teatro local tinha qualidade, que as produtoras tinham que se engajar neste processo. Que produtoras como a dele tinham uma responsabilidade social. Levantei a voz. Eu estava entusiasmado com o meu discurso, revertendo uma situação negativa. Lá no fundo de mim achava que éramos uma causa perdida e isso me deu o alento dos desenganados. Feliz comigo mesmo, parei para ver o efeito da minha argumentação. Percebi que a Lúcia sorria, e, mais ainda o Geraldo olhava para mim, tentando entender onde eu queria chegar. O ápice do meu discurso foi quando, olhei no olho do Geral e, fiz outra pausa e perguntei:

- Tu aceita?

- Sim, já disse que aceito.

Não conseguia acreditar:

- Mas tu aceita mesmo?

- Sim, já falei.

Sem entender o que ele falava:

- Mas aceita produzir a peça que eu estou dirigindo, essa peça mesmo?

- Sim.

Finalmente, caindo a máscara, quase deprimido:

- Mas nós não somos ninguém.

Ele debochado completou:

- Mas vocês têm o essencial, não tem?

Aí foi a minha vez de falar todos os sims que eu não tinha escutado e vieram em série com ondas do mar:

- Sim, sim, sim.

Lúcia e eu saímos dali e fomos para o meu apartamento na Getúlio Vargas. Contamos para a Márcia que fizemos a proposta e o Geraldo aceitou na hora. Temos que festejar Opus Promoções vai produzir Bailei na Curva. Abri um licor de chocolate na falta de algo melhor. Bebemos.

Num clima estilo Casablanca podia se dizer que a aquele encontro com o Geraldo era o começo de uma grande amizade.

domingo, 27 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (17)


Julho, 22.
  1. Ensaiamos das 16 horas até as 19 horas.
  2. Grêmio x Penharol, Libertadores da América

Neste período de ensaios Flávio começou a ligar para a Márcia. Ligações seguidas, muitas horas de conversa, voz melosa, clima íntimo. Eu estava na sala dos fundos, escrevendo na Olivetti Lexicon 80 que surrupiara do meu pai, e fui até a sala de estar. Respirar um pouco. A salinha dos fundos era para ser o quarto da empregada, mas se tornara meu escritório. Não tinha uma boa ventilação e a luz era artificial o tempo todo. Precisava de ar e de sol. Parei na janela aberta, olhando o movimento de carros da Getúlio quando percebi que Márcia seguia no telefone. Achei estranho que eles conversem tanto tempo. Percebo que há alguma coisa se esboçando. Um clima. Controlo o ciúme. Será o ele agüentaria toda a barra, Pedro, grana, e tudo o mais. Por um momento imagino que ela vai embora com ele e sinto um alívio. Imediatamente me culpo por isso. Márcia está muito carente. O erro deve ser meu. Por outro lado, nos ensaios, os dois fazendo cenas conjuntas de casais facilita o aparecimento de um clima amoroso. Os atore se entregam as emoções de seus personagens e acabam por assumir tal emoção. Por isso, há tantos casamentos entre parceiros e parceiras de palco. Teatro é um negócio perigoso. Além disso e ao mesmo tempo, este clima latente deixa os dois muito constrangidos na cena. Tínhamos que representar uma cena que descrevesse o momento de morar sozinho, entre o final da adolescência e o início da vida adulta. Momentos de decisão. A saída da casa dos pais, os novos modelos de relacionamento, as dúvidas frente ao casamento e o rescaldo do amor livre dos anos 60, reciclado nos 80. Márcia e Flávio se atrapalhavam. Não consigo terminar a cena e eles não conseguem improvisar. Mando todo o mundo sair da sala de ensaio. Ficamos nós três. Peço que eles improvisem de novo. Pego uma máquina de datilografia da sala ao lado e começo a escrever ao mesmo tempo em que eles atuam. O taque-taque da datilografia anda um pouco atrás da cena. Um tempo certo para a reflexão e estou com eles em cena. Taque-taque das teclas. Vozes exaltadas. Eles discutem até que se faz um silêncio. O taque-taque perde o ritmo. Um na frente do outro e eu na frente da máquina. Levanto a cabeça, vejo os dois parados, olho no olho. Baixo a cabeça e escrevo: diz Paulo não dói. Falo em voz alta. Márcia repete. “Diz Paulo, não dói!”. Taque-taque. Eu te amo. – sugiro, salto no escuro, fala para ela - Eu te amo.

Ele fala “eu te amo”.

  1. Elipse do ciúmes

Atores entram nos processos de forma ingênua, brincam com a radioatividade das emoções. Todo grande ator é tomado pela personagem de tal modo que freqüentemente se confunde. No nosso processo tal confusão se prestava ainda mais, pois as personagens eram extraídas de nós mesmos e não sendo exatamente nós, poderiam ter sido ou acontecido, pois se inseria no rol de possibilidades que cada um carrega dentro de si.

Um beijo sela o desfecho da cena. Achei o final da cena e resolvi um problema conjugal sem precisar discutir a relação. Aguentei no osso com um futebolzinho para suportar.

Na mesma noite, assisti primeira partida da final da Taça Libertadores da América, Grêmio, da Azenha, enfrentando o Penharol do Uruguai, no apartamento da Getúlio Vargas. Os vizinhos da frente são uns colorados fanáticos. Eu era meu costume gritar quando o Grêmio fazia gol, pois me incomodava um pouco este tipo de invasão. O Grêmio saiu ganhando com gol de Tita de cabeça e eu, como de costume, não vibrei. No segundo tempo, gol de Fernando Morena, do Penharol e tive que escutar uma gritaria da vizinhança. O Grêmio suportou uma tremenda pressão, mas veio com um empate. Fiquei calado, daqui a sete dias, a finalíssima seria em casa, Porto Alegre.

Em algum momento, os ventos teriam que soprar a meu favor.

Julho, 23.

  1. Ensaiar uma reunião dançante.

Levei para o ensaio uma eletrola portátil que liga puxando o braço para fora. Mais minha coleção de compactos e todos os discos dos Beatles que eu tinha. Muitos amealhados sorrateiramente dos meus irmãos mais velhos e outros que apareciam lá em casa esquecidos depois de algumas reuniões dançantes. Regina, Claudia e Márcia levaram uma boa quantidade de figurinos. Ligamos a eletrola e nos vestimos. Flávio colocou a calça boca de sino de veludo bordô do irmão da Márcia e uma camisa cacharel. Márcia vestiu uma mini-saia e o Hermes falou:

- É a Betiranha! – Assim o nome da personagem do conto de Júlio César Monteiro Martins entrou na peça. Poderia ter mudado para Katiranha, Luciranha, Lecaranha. Mas seria sempre uma Betiranha. Ficou. Anos depois conheci Júlio César Monteiro Martins no rio de Janeiro. Ele assistiu a peça. Ele me deu um livro de presente e na dedicatória fala dos pequenos plágios. Um pouco de mágoa, mas também um pouco de admiração. Mútua.

E assim, passamos todos o ensaio dançando e se vestindo. Tínhamos aí o Torugo, a Betiranha e a cena de reunião dançante. Mais uma vez, não houve ensaio. Foi mais uma vivência.

Este tipo de exercício foi o grande propulsor do processo e também a grande dificuldade nos anos seguintes. Nossa virtude é nossa desgraça. Como o resultado surgiu aparentemente muito fácil, parecia que se tratava de uma conquista sacramentada. Parecia que tinha sido fácil e que o resultado só dependia de aplicar uma forma. Além do fato de ainda sermos muito verdes para alcançar o objetivo alcançado, em tudo o acontecido superava o esperado. Levamos anos absorvendo os resultados do “Bailei na Curva”. Invariavelmente todos do elenco tiveram crises criativas e ou se afastaram definitivamente ou temporariamente do teatro. Sem contar que se criou a ilusão que todos criaram a peça independente dos outros. Ganhamos na vivência, mas perdemos na reflexão.

sábado, 26 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva (16)

Junho, 25.

  1. TV.

Assistimos a entrega do Prêmio do Festival Universitário pela RBS TV. A música começava a decolar e alinhavava uma trajetória própria. Elaine Gaissler apresentou a música no projeto Unimúsica e foi um sucesso. Uma gravação com arranjo muito popular e na voz de Elaine popularizou a canção. Mesmo sem disco na praça foi a mais pedida de muitas rádios e era sempre usada na divulgação do espetáculo. A peça carregava a música e a música alavancava a peça. Um casamento perfeito. Ainda no final daquele ano foi gravado um show musical onde tocaram os melhores músicos do Estado. Flávio, ainda um desconhecido, fechava o programa que foi apresentado na programação de virada do ano seguinte. Haviam belas tomadas áreas onde desfilavam as ruas de um porto não muito alegre. Completaria o circulo da música num clipe feito pelo Gilberto Perin para o programa Fantástico. Horizontes se abriam para bailar pelo Brasil.


Junho, 29, quarta-feira, dia de São Pedro.
  1. Iniciamos os ensaios diários do “Bailei na Curva”.

Com o avançar do processo surge a necessidade de uma freqüência maior de trabalho. Os espaços dentro da Faculdade estão cada vez menores. O Flávio ficou de conseguir um lugar na ABIPEX. Era um escritório desativado de oficiais do Exercito emprestado graças a tráfico de influência do Ubirajara, pai do Flávio. Marcamos a reunião. Entro numa sala de pouco mais de trinta metros quadrados. Mínima para ensaios. Única vantagem é que tem uma sala contígua com máquina de escrever e escritório e, na sala principal, duas portas em cada extremo da parede o que pode simular as saídas. O resto é péssimo. Úmida, pouca luz e sufocante. Reclamo das condições e, com isso, Flávio se irrita. Alguém impede que a briga tome proporções maiores. Tenho que planejar de forma específica toda a concepção das cenas.

Apesar destes problemas, as férias da Faculdade começaram e eu tinha ainda mais tempo livre. Aqui inicia a grande virada do processo de ensaios. Sabia que teria trinta dias para terminar a peça. E passamos a trabalhar dois de ensaios. O terceiro turno eu usava para escrever a peça. Já tinha feito vários esboços, mas sempre com vergonha de mostrar. Já tinha escrito as famílias. Imperativo era aprofundar cada vertente social. Uma família representando a ideologia militar. (Experiências do Flávio). Outra de empresário, ricos de direita e apoiadora do golpe (minha família). A família de intelectuais de esquerda (da Márcia e da Claudia). A família de classe mais baixa, ligada ao operariado e simpatizante do movimento trabalhista e a classe média bem média representada por alguém ligado ao funcionalismo ou a pedagogia de base (Hermes e Regina). Tinha na minha mente estas cinco vertentes. Não dá para dizer se foi uma coincidência ou apenas uma amostragem estatística que calhou o fato de que cada um dos integrantes do grupo mais perto ou mais longe tinha, de um modo ou de outro, uma ligação com estas vertentes. O fato era que estávamos frente a uma indedibilidade.

Imaginei praticáveis, maiores, menores, altos e baixos que corresponderiam as classes sociais e definiriam os espaços cênicos ao mesmo tempo que viabilizariam ensaiar naquele espaço diminuto da ABIPEX.

Um novo eletro e finalmente as convulsões do Pedro estavam sob controle. A mudança da medicação fez efeito. Agora é esperar que ele evolua. Levei Pedro para passear na Praça Israel. Com um olho brinco com ele, com outro observo outras crianças. A luminosidade de Porto Alegre nesta época do ano chega a constranger o meu olhar.

Julho, 14.

  1. Grupo da Caixa Econômica
  2. Ensaios Bailei.
  3. Hermes falta vários ensaios em seqüência

Ensaios com o pessoal da Caixa Econômica nas quintas e sextas. Em agosto teremos ensaios nos sábados.

Ensaio do Bailei nos outros dias: segunda, terça, quarta, sábado e domingo.

Hermes faltou o ensaio. Fico muito irritado. Os atores me olham. A frustração quando se planeja um ensaio e alguém falta é muito grande. Nestas horas se percebe o amadorismo do nosso teatro. Os resultados são muito além das condições para que eles ocorram. Hermes não é de faltar ensaio, pelo contrário, é um ator muito compenetrado e obstinado. Porém, vem faltando. Tenho na minha cabeça entre aquelas crianças que 64 brincavam na rua, um deles tem que morrer. Ainda não havia decidido qual, quando a seqüência de faltas do Hermes aconteceu. Ele deve ser o cara que vai para a guerrilha, ele será nosso mártir, o herói da peça se apresenta através da falta.

Pedro desapareceu.

Quando que o nome une o personagem ao meu filho, levo um choque. Eu decidi a morte e ela se apresenta sob a forma de Pedro. Duplo impacto.

Julho, 21.

  1. Não dei curso.
  2. Preciso de um tempo para pensar.

Dormi mal pensando no Pedro morto. As imagens se mesclam, Pedro-Hermes e Pedro Conte, unidos pelo acaso. Insônia. Falta de ar, tenho uma crise se asma. Passo a noite lendo o Diário de Che Guevara. Seus últimos momentos na La Higuera, onde perdeu as botinas, dispnéico, faminto e cercado. Bichos caçados de noite e de dia. Ele também tinha asma.

Leio um conto do Júlio César Monteiro Martins. O clima dos contos dele é uma referência para a peça. Num dos ensaios levo para o elenco e leio. J.C. Monteiro Martins é um contista da nova geração e tem a mesma idade que eu. Não está, por isso, isento dos atos da ditadura, embora, assim com eu, não tenha sido protagonista de ações heróicas. E é justamente isso que me interessa. Uma vida comum que viu um Brasil ser encarcerado e não percebeu. Vai saber vendo a peça. O teatro purgando esse grande furúnculo da cegueira coletiva, a omissão. Última cena: após a leitura do texto do J.C.Monteiro Martins entra a música do Flávio Bicca em play-back. Atores começam a entrar em cena como se estivessem na Rua da Praia ou na Redenção, atravessam a cena. Um grupo faz teatro na rua contando uma história do Brasil.

Passei o resto da noite acossado pelas exigências do pensamento.

  1. Elipse que a insônia não viu.

A noite mal dormida, encobriu um pedaço significativo da cosntrução do Bailei. Mal sabia que estava frente a cena mais emblemática da peça. Naquele momento era apenas um irritação de um lado e excesso de trabalho de outro. Tinhamos um hiato narrativo e a cena que só realizaria no mês de setembro quando, na mesma noite, improvisamos a cena quando Pedro sai de casa e cai na clandestinidade e o encontro da Ana, a namoradinha de infância de Pedro, com Dona Elvira, mãe de Pedro. Faltando em seqüência, Hermes Mancilha, estava se transformando no personagem principal da peça. Mas naquela hora ninguém sabia, nem podia imaginar. Um luminusidade obscura nos conduzia.

Nosso mérito é que seguiamos a escuridão.