sábado, 29 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (13)

Abril, 20.
  1. Estudar com o Marcelo Goldani.
  2. Reunião com Flávio Bicca. Ele me convida para fazer uma música.

No meio de um monte de gente careta e que só se preocupava em se preparar para a prova de Residência Médica encontrei dentro da Faculdade de Medicina o Marcelo. Um cara especial. Visão de mundo ousado, cheio de coragem e de idéias originais.

Cazuza, vamos pedir piedade para essa gente careta e covarde.

Flávio Bicca chegou no meu apartamento da Getúlio Vargas esquina com Rodolfo Gomes depois do jantar. O violão debaixo do braço, olhos vibrantes. Falava que tinha tido uma visão da peça e queira traduzir isso numa música. Acordes iniciais. Falei que já conhecia aquele som. Ele disse que era inspirado no Gilberto Gil e no Bob Marley, só que noutro ritmo, noutra harmonia. Women No Cry. Ele cantarolou algumas coisas e no meio apareceu:

- 64, 65, 66...

- Isso é bom. Vai por aí – eu falei.

Ele insistiu:

- Júlio, vamos fazer esta música juntos.

- Não tenho idéia – respondi. – Mas vai por aí, esta idéia de uma seqüência de anos como refrão pode ser muito legal.

Algum tempo depois ele iria aparecer com a música Horizontes.

Há muito tempo que ando
Nas ruas de um porto não muito alegre
E que no entanto, me traz encantos
E um pôr-de-sol me traduz em versos

De seguir livre, muitos caminhos
Arando terras, provando vinhos
De ter idéias de liberdade
De ver amor em todas idades

Nasci chorando, Moinhos de Vento
Subir no bonde, descer correndo
A boa funda de goiabeira
Jogar bolita, pular fogueira

Sessenta e quatro, sessenta e seis
Sessenta e oito, um mau tempo talvez
Anos setenta, não deu pra ti
E nos oitenta eu não vou me perder por aí

Não vou me perder por aí
Não vou me perder por aí
Não vou me perder por aí

Abril, 21.

  1. Feriado de Tiradentes.
  2. Aniversário do meu pai.
  3. Ensaio no CPERGS


Ele sempre se vangloriou que o ferido de Tiradentes era um pretexto para o seu nascimento. Almoço em família, muito riso, vinho e, invariavelmente, discussão política.

Depois da massa, vinho e brigas, nada melhor do que uma sala de ensaios.

Elenco da peça: Cláudia, Néco, Flávio, Regina, Hermes, Márcia, Júlio.

Roteiro provisório, mas já evoluído, para o ensaio a tarde no CPRGS.
Cena 1: família do militar.
Cena 2: Família do comunista.

Cena 3: Parada no ônibus.

Cena 4: Família do médico.

Cena 5: Crianças a noite.

Conseguimos CPRGS para ensaiar. Um salão enorme. Improvisamos a cena da casa do comunista. Mãe queimando livros. Lembrança trazida pela Cláudia. A mãe dela queimando livros nos fundos da casa. O personagem do Flávio se chamava Chiquinho e só depois o transformei em Paulo. Um ensaio meio estranho, faltando muita gente. Aproveitei um dos meus exercícios preferidos da Viola no qual o ator 1 entra em cena e através da relação com o ator 2, tem que descobrir quem ele é. A identidade está no vínculo. O ator 1 tem que integrar a informação nova trazida pelo ator 2 como se ela sempre existisse. Foi neste dia que apareceu o nome de Pedro para o personagem do Hermes. A Márcia estava improvisando (ator 1) e Hermes (ator 2) se apresentou para ajuda-lo. Revelou-se a identidade: eram irmãos. Falou seu nome para ela: Pedro. Márcia sorriu carinhosa. E foram o dois a brincar com se tivessem passado toda a vida juntos.

Um fato, uma espécie de coincidência, embora no meu íntimo, por formação e intuição não acredite nelas, chamou a atenção de todo o grupo. Já alinhavara várias cenas de famílias em exercício que ainda não mostrara para o grupo. Foi um tipo de improvisação textual que eu fazia antes e depois dos ensaios. Imaginava que através delas se conseguiria desenhar um quadro do movimento das idéias. Porém, quando começamos a conversar sobre nossas famílias e sobre as experiências das quais poderíamos extrair dramaturgia a coincidência se manifestou. Dentro do grupo tínhamos uma amostra muito fiel das forças vivas que geraram e sustentaram o golpe militar.

O Flávio era filho de militar. Em 64 seu pai vivia de prontidão no quartel e naqueles dias de março passou semanas sem aparecer em casa. Um dia veio para almoçar. Estava com uniforme de instrução e bastante nervoso. Não deu muita atenção para os filhos e voltou para o quartel. Serviu de base para a primeira cena da peça.

Claudia, filha do economista, Cláudio Acursso, trouxe sua experiência no exílio, a viagem sem sentido e a perda dos coleguinhas de aula. Certo dia, chegando do colégio flagrou sua mãe queimando livros. Ele era professor da Universidade.

Hermes vinha das classes populares. Morava em Canoas, sua família vivia num meio cultural pobre e ele muito cedo se viu trabalhando em eventos dentro dos Sindicatos. Olhando o meio em que se criou, ninguém apostaria que se fosse se tornar um artista. Mas ele foi. Hoje na Casa de Cultura Mario Quintana tem uma sala em homenagem a ele.

Regina era oriunda de uma classe média baixa. No palco era uma atriz maravilhosa, sustentava uma tensão dramática como poucas que eu conheci. A vida familiar, por outro lado, era marcada pela incompreensão dos pais. No entanto, é da mãe da Regina um dos consolos mais singelos que já vi. Foi durante uma das brigas dentro do grupo e na iminência de uma dissolução. Regina estava chorando no seu quarto quando a mãe entrou. Perguntou o que estava acontecendo. Regina falou das brigas e da possível separação. A mãe dela falou com uma bondosa ingenuidade:

- Minha filha, os Beatles que são os Beatles se separaram...

Regina riu. Mas riu muito. Talvez uma das ouças vezes que sua mãe a fez gargalhar.

Márcia era filha de médico, político e comunista. O ambiente na casa dela ela sempre efervescente e estimulante. Quando estava começando meu namoro com a Márcia, ela interrompeu um clima animado e falou em tom grave:

- Júlio, preciso te falar uma coisa. Meu pai...

- O que tem ele?

Ela olhou para os lados buscando algum microfone escondido, clima de suspense. Fiquei tenso pensando no que seria.

- Ele é do Partidão – ela falou.

- Ah, eu já sabia. Eu até já votei nele.

Meu pai representava o pensamento conservador da direita. Empresário apoiava os movimentos militares para manter a ordem. Sempre muito apocalíptico previa um desastre a cada notícia. Quando do golpe militar, brincamos na Dario Pederneiras e foi a primeira e única vez que as turmas que estudavam a tarde e as da manhã puderam brincar num dia de semana. A tarde, no entanto a incerteza da situação política se agravou. Houve uma debandada. Cada um para sua casa e o clima mudo radicalmente. Entramos no Simca Chambord e fugimos para Forqueta. Eu entrei no carro a contragosto. Resmungando e reclamando, pois tinha sido uma das manhãs mais divertidas da Dario Pederneiras de todos os tempos. Minha irmã chegou no meu lado e disse:

- Júlio, nem um pio que teu pai está muito nervoso. Ele está fugindo da morte.

Palavras que aparecem na cena da casa do Caco. Anos depois, meu sobrinho Tiago Conte, filho da mesma Salete que falou está frase, interpretava o personagem.

Aqui minha irmã Salete e seu filho, meu sobrinho, Tiago que tinha cinco anos e assistiu o Bailei de forma clandestina em 84 e fez o Caco nos anos de 2001 em diante e participou da milésima apresentação. Veja a placa ao fundo,

terça-feira, 25 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (12)



Abril, 14.
  1. Nei Lisbônus.
  2. Andradas, 6° andar, Caixa, 19 horas.

O Café do Chinês era um boteco de esquina na Salgado Filho com a Dr. Flores. Tinha um pastel muito oleoso e um café aguado. Talvez por isso mesmo, pelo clima decadente a marginalizado, e porque o dono era um Japonês mau-humorado que era chamado de Chinês por todos, o pessoal da Escola de Teatro se reunia ali durante os intervalos entre as aulas do DAD. Como cafezinho só era servido no balcão, resultava que para sentar-se à mesa, pedíamos uma meia taça e ficávamos destilando nossos projetos e ensaiando confissões. O Café do Chinês portanto era mais do que ponto de encontro dos alunos de teatro, era nossa sala de reuniões. Nesta manhã, como era hábito, um aluno que não lembro o nome, contava o enredo da peça que ele iria escrever. Uma história mirabolante de um casal preso sob o palco de Woodstock e no final se revelava que eles tinham tomado ácido e estavam condenados a morte. Uma história de impacto. Estávamos em silêncio pensando no que dizer para o nosso dramaturgo, quando uma que uma mulher, com uma bolsa peruana a tiracolo, me ofereceu um bônus para um show do Nei Lisboa. Eu assistira uma breve apresentação do Nei num show musical no pátio da Faculdade de Medicina. Nei tinha dezoito anos e sua performance foi uma das coisas mais marcante que assisti na minha vida. Violão e voz na mais perfeita intimidade com a platéia. O bônus incluía um ingresso e serviria também para angariar fundos para a produção do LP que se chamaria “Para Viajar No Cosmos Não Precisa Gasolina”.

Não tinha dinheiro, não comprei, nem fui ao show. Ah, se arrependimento matasse!

Comecei a dar aula para o grupo de teatro da Caixa Econômica Federal. Mais tarde, quando a CEF perdeu suas características e seus funcionários foram cedidos para outras instituições, este grupo passou a se chamar Caixa de Pandora. Dei aulas para este grupo durante todo o período de ensaios do Bailei. E pude fazer vários exercícios que depois aplicava no grupo do Bailei. Supervisionei uma peça do Plínio Marcos chamada “Homens de Papel”. Uma história sobre catadores de lixo que prenunciava o mundo de sem-tetos que hoje tomaram as ruas das grandes cidades. Foi uma experiência muito boa. O grupo da Caixa me permitia experimentar. Um alimentava o outro. Adquiri conhecimento em dose dupla.


Abril, 15.

  1. TV Gaúcha.

Teste para um projeto de tele-dramaturgia na TV Gaúcha, sob a direção de Gilberto Perin. Ele sempre foi um criado ousado, tínhamos tecnologia, diretores, redatores e atores para construir um núcleo. A engrenagem da Rede Globo inviabilizou o processo, abortando e atrasando vinte anos o processo de tele-dramaturgia gaúcho. Se tivesse o processo tivesse acontecido a RBS TV hoje seria teria adquirido uma experiência que a colocaria no mesmo nível da TV Globo. Foi necessários o difícil caminho do Super 8, e percorrer as salas de exibição do Festival de Gramado para que a qualidade do cinema gaúcho que nesta época já produzia, fosse reconhecido. Foi preciso quase quinze anos até Jorge Furtado conquistar o mundo com a Ilha das Flores e o horário morto de sábado a tarde sustentar uma audiência surpreendente com os Curtas Gaúchos. O sucesso da programação com os curtas nos final do anos 2000 e seguintes foi tanto que a própria RBS TV investiu na área. Sempre fico a imaginar o que seria o movimento cultural do RGS se aquele projeto de tele-dramaturgia tivesse decolado em 83.

Assisti a peça do Hermes Mancilha no UNICENA. Chamava-se “Do You Remember Me”. No final tinha uma música cantada pela Elis Regina. Eu adorei. Mais adiante acabei usando, do mesmo disco, outra música da Elis. Vi pela primeira vez o Néco. Cara de homem, jeito de galã. Um metro e noventa, bonito, alto e com uma voz possante. Pensei, na mesma hora, que ele poderia substituir o Torquato na peça. Convidei e ele aceitou.


Abril, 18, segunda-feira.

  1. Renovar livros da biblioteca.

Entrei na Biblioteca da Medicina no prédio da Bio Ciências. Alguns amigos liam. Fui até uma estante e peguei involuntariamente um livro marrom. A Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud. Apanhei por interesse inconfesso, folhei algumas páginas, alguém me chamou e sai da Biblioteca com o livro na mão. No corredor da Faculdade me vi ainda folheando as páginas que falava sobre o inconsciente, pulsão, sonhos. Um mundo misterioso que vive dentro de nós. Absorvido, abri a bolsa peruana que usava e coloquei o livro dentro. Meu primeiro livro de psicanálise foi roubado da faculdade de Medicina. Uma coisa inconsciente é claro.


Abril, 19.

  1. Aula.
  2. Falar com o Alfredo Fedrizzi TV.
  3. Telefonar para Caxias.
  4. Curso em Alegrete.

Foi confirmada a data na Assembléia para o “Não Pensa Muito”. Mais um problema a Sônia resolveu sair da peça para fazer um trabalho com a Maria Helena Lopes. Este trabalho veio a ser uma bela peça: “A Crônica de Uma Cidade Pequena”. Substituição obrigando a uma parada nos ensaios do Bailei.

Fui aprovado para o projeto de tele-dramaturgia que não saiu do papel.

A subsecretaria me contratou para dar um curso de teatro em Alegrete.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (11)



Abril, 12, terça-feira.

  1. Projeto Bolsa Arte.
  2. Buscar dinheiro.
  3. Pagar contas.
  4. Cortar o cabelo.

Bolsa Arte foi um projeto de pesquisa financiado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escrevi o projeto de encenação do “Não Pensa Muito Que Dói”. Como a peça já estava pronta e realizada, eu apenas tinha que, mediante a apresentação de relatório, receber o dinheiro. Não era muito, mas vinha sempre bem. Participar da Bolsa Arte, mais do que tudo, constituía um prestígio. Sem falar na ajuda para cartazes, que eram impressos na faculdade e gozava, por participar do projeto, de certas regalias como salas de ensaio e xerox grátis.

Escrevi a primeira cena da peça do “Bailei”. Ensaiamos no Auditório Tasso Correa do Instituto de Artes. Muitas improvisações. Depois do ensaio eu tentava escrever. Muitas imagens pairavam sobre a minha mente. O quarto dos fundos do apartamento da Getúlio era destinado a empregada. Foi transformado no meu escritório onde eu passava horas escrevendo à máquina. Duas técnicas de dramaturgia muito úteis. A reversão de expectativa e a inversão. A primeira se realiza construindo um clima numa determinada direção e quase em cima, muda-se a perspectiva. O resultado: humor. A inversão é quase a mesma, mas com uma peculiaridade: um texto aparece de novo na boca de outro personagem. São técnicas simples, circences, e sem perceber eu as uso na cena do carro.

A grande questão quando se escreve é seleção do momento, o recorte. A opção por um determinado momento, uma determinada ação tem um caráter de incerteza e indecidibilidade da origem. Escolhe-se às escuras, quase ao acaso. A capacidade maior ou menor de um artista seria na disposição de mergulhar nesta transitoriedade a espera que em algum momento um gesto, uma ação ou uma palavra, integrará a trama. Descobri, anos depois, que essa ação se chama “fato selecionado” e foi descrita por um matemático chamado Poincaré. O fato selecionado é fundamental para a dramaturgia. Até este dia, tínhamos muitas cenas improvisadas e algumas anotadas. Neste dia escrevendo, ocorreu o fato selecionado.

Lembrei da primeira vez que sai com uma guria de carro. Eu tinha uma namorada e queria sair com outra moça, que depois acabei por namorar. Sábado à noite, combinei com meus amigos que simularia uma bebedeira e eles me levariam para casa. Assim eu fiz. Minha namorada, intrigada, ficou se perguntando como é que eu, tão forte para bebida, ficara bêbado tão rápido. Meus amigos me deixaram em casa e pedi o carro emprestado do meu irmão. Era o Opala 4100 com tala larga de magnésio, quatro marchas, cambio no console e um som afusel. Ele, solidário, me emprestou desde que eu lavasse o carro no dia seguinte e colocasse gasolina. Passei na casa da moça perto das onze horas. Combinamos de ir na boate Macumba. No caminho ela quis comprar cigarro e parei no Posto Figueiroa. Pedi cigarro, conversei com desenvoltura com o frentista. Ainda não tinha carteira e queria dar a impressão de experiente. O cara trouxe o Minister e eu fiz questão de pagar. Chegamos na Macumba. Conversamos, dançamos e eu queria beija-la, mas não encontrava maneira. Dancei colado e ela virou rosto. Na hora da luz negra, os olhos dela era duas pérolas azuis me convidando, mas a boca recusou. Sentamos para um drinque. Será que vou ter dinheiro para pagar o Gin Tônica? Ela olhou para o lado, balançando o ombro com um desleixo premeditado e seguiu olhando para a pista de dança até que eu toquei em seu ombro. Ela se virou e eu ataquei. Um beijo na boca direto sem escala. Ah, que beijo! Na saída da boate, tive que pedir dinheiro para ela para completar a conta. O dinheiro do cigarro voltou. Na saída da Macumba, fomos para a Prainha.

Essa experiência e outras, inspiraram a cena do carro. Na primeira versão do texto tinha o episódio do frentista e do dinheiro emprestado. A piada que eu mais gostava no momento da redação era quando Ruth depois de combinara com Vera que não beijaria sem que ele lhe pedisse em namoro, de deu conta que beijara antes:

- Mas tu me beijou e ainda não me pediu em namoro.

- Preciso de um tempo para pensar. – Era a técnica da inversão de falas.

Abril, 13.

  1. Ensaio.
  2. Cena do carro.
  3. Escrevi.

Lemos pela primeira vez a cena na porta do Instituto de Artes. Dia nublado, enquanto esperávamos a liberação da sala. Leitura branca em teatro significa ler sem as intenções. Só para tomar contato com a cena. Enquanto líamos, meu coração palpitava. Terminou a leitura e eu me desculpei. É só um exercício. O elenco gostou. Aquilo foi um incentivo para seguir escrevendo.

Como muitos que eu já vinha fazendo, ensaiando uma escrita. Uma vontade tímida de escrever para teatro aparecia camuflada na idéia de que fosse apenas um exercício. Lá no fundo, sentia que a peça começou ali. O norte estava estabelecido. Tínhamos que criar algo antes e algo depois. Já tinha o coração do Bailei. A cena do namoro no carro.

sábado, 15 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (10)

Abril, 6.

  1. Foto do primeiro elenco do Bailei na Curva
  2. Unicena.

Com Flávio, Márcia, Regina, Claúdia, Hermes, Torquato e eu, os ensaios para a nova peça continuavam. Interrompido apenas para a apresentação do “Não Pensa Muito” abrindo o Projeto Unicena. Convidados pela organizadora Haidée Porto antes mesmo da premiação tivemos todas as expectativas superadas. Foi uma loucura. Habituados a salas de teatro vazias, nós tínhamos pela frente um público de mais de mil pessoas. Era o início de uma aventura que duraria mais de vinte anos e mudaria o perfil do público e o sistema de produção do teatro gaúcho. Foi uma apresentação memorável. Elenco estava entusiasmado. Hermes Mancilha, Marília Rossi, Flávio Bicca, Sônia Coppini, Lúcia Serpa e Torquato Filho. Este estava especialmente inspirado. Exuberante e divertido, Torquato tinha um humor espontâneo quase infantil, e às vezes quase ingênuo. Por isso mesmo era um pouco trapalhão o que o tornava, involuntariamente, mais divertido. Em especial quando tentava ser sério. Naquele dia ele realizou a proeza de cair do palco na cena do Reitor. Torquato sentava-se numa cadeira à beira do palco, de costas para o público. Toda sua força interpretativa se concentrava no movimento e intensidade das mãos, da coluna e dos com os braços uma vez que o rosto encontrava-se encoberto. No entanto o chão encontrava-se escorregadio por conta de um piso de plástico totalmente inadequado. O calor da platéia incendiou a atuação do Torquato que começou a se mover de forma ainda mais intensa. Sua cadeira escorregou e ele caiu sobre o público. Como um precursor dos shows punks que só vieram a se realizar nos anos 90, Torquato foi arremessado de volta pela massa que ainda o aplaudia. Ele virou-se para o público, pediu silêncio e retomou a peça. Torquato era uma figura à parte. Ator mais importante do “Não Pensa Muito Que Dói” tanto que vinte anos depois, remontei a peça tendo como nome do personagem principal, meu querido amigo.

Abril, 10.

  1. Ensaio no Auditório Tasso Correa.
  2. Saída do Torquato.

Torquato disse que ia sair da nova peça. Chegou no ensaio e falou que adorava trabalhar comigo, mas que tinha um convite para fazer “A Cantora Careca” de Ionesco com direção de Antonio Gilberto que ele amava. O ensaio não estava muito bom e quando o Torquato falou que ia sair eu fiquei ainda mais frustrado. Sabia que ele era uma pessoa muito importante em todos os processos que participava. Um incentivador, me apoiava, dava sugestões. Gostava de me estimular dizendo eu deveria ousar muito e sempre, pois de outro modo, Dioniso não me perdoaria. Torquato via em mim algo que demorei muitos anos para acreditar. E agora estava ele ali desistindo do trabalho. Eu falei que até achava que a peça com direção do Antonio Gilberto seria boa, mas que nosso trabalho seria trezentas vezes melhor. Foi uma das muitas bravatas que lancei ao longo de minha vida. Quando acossado acabo reagindo assim. Como certa vez pulei da plataforma de cinco metros no Petrópolis Tênis Clube. Nunca havia pulado de tal altura. Olhava com admiração e pavor os meninos da minha idade saltando da plataforma. Quando o Dani, um vizinho arrogante, me desafiou a saltar. Eu respondi que não saltava porque não queira.

Então ele pediu a prova:

- Vai lá e salta.

Eu fui. Um frio na barriga, o chão saindo debaixo dos meus pés. Saltei.

A saída do Torquato me remeteu ao mesmo desafio. No íntimo lamentava e muito a saída do Torquato e agora se juntava a Marília no repertório de perdas. “Bailei na Curva” teve mesmo muito mais repercussão do que “A Cantora Careca”, por outro lado, Antonio Gilberto, migrando para o Rio de Janeiro, se tornou um grande diretor e um dos produtores de maior prestígio no centro do Brasil.

Torquato também foi morar no Rio. O vi pela última vez quando ele levou a mim e a Patsy Cecato, com quem eu já era casado, para o Sambódromo. Torquato morreu de AIDS nos anos 90, foi cremado. Suzana Saldanha, amiga comum e sempre solidária, passeou com sua urna pela Av. Atlântica numa manhã de sol e depositou as cinzas na paisagem do Arpoador que Torquato tanto adorava. Deveria estar um palco, junto com os fantasmas de todos os atores que amaram o teatro e dedicaram suas vidas para este ofício enlouquecido e apaixonante.

Abril, 11.

  1. Exercício da Viola.

Resolvi aplicar a técnica da Viola Spolin. Trata-se de uma série de exercícios de improvisação de uma americana que conseguiu sistematizar a técnica de interpretação do encenador e ator russo Constantin Stanislawski. Esta técnica suscitou a primeira grande experiência brasileira com os exercícios da Viola Spolin, esta uma americana que tratou de sistematizar Stanislawski usando um modelo pragmático de realização. Tomara contato com Viola Spolin quando fizera um curso de extensão com a Malu Pupo que veio de SP e ministrou aulas durante uma semana. Foram exercícios reveladores. Cada cena do Bailei é uma aplicação direta do método da Viola. Em Porto Alegre Beto Ruas & Suzana Saldanha recém chegados de Paris traziam na mala as últimas novidades. Beto com o uso do “plateau” e máscara neutra produziu um belo espetáculo baseado na obra de Franz Kafka: “O Processo”. Suzana vaticinava que o futuro do teatro estava entre o Plateau (técnica das máscaras) e Viola (improvisação). Também fiz curso de máscaras com o Beto, mas optei pela Viola.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (9)


Abril, 4.

  1. Prova de Urologia.
  2. Ensaio no IA.
  3. Confirmar datas na Assembléia.

Ensaios no Instituto de Artes. Começamos com as improvisações. Flávio, Cláudia e Márcia improvisaram uma ótima cena de traição e ciúmes. Pensei que poderia ser um ícone para a revolução sexual, do amor livre e de todo o alegre desbunde dos anos 60 e 70. Ainda não se conhecia a face mortal da AIDS. Todos podiam transar com todos e não havia a propriedade. Porém o amor livre não deu certo, pois qualquer amor nunca é livre, e sim tirânico e possessivo. O bisturi do ciúme fazia os seus efeitos. A revolução falhou, mas a cena decolou naquele dia.

Abril, 5.

  1. Lua minguante.
  2. Aula no IML.
  3. Roteiro.

Medicina Legal: visum et refertum. Lesões produzidas por instrumento contundente: escoriações, equimoses, hematoma, bossa, luxação, fratura, ruptura visceral, ferida contusa. Muitas lesões, mas as dores não mais. No morto a ferida, no vivo a dor. Característica da ferida por instrumento cortante: tem borda afiada, age por deslizamento, produz lesão linear, com bordas nítidas e regulares, fundo também é regular. Deixa uma cauda de saída e de entrada.

Dor psíquica é marca de quem está vivo, deixa cauda, cicatriz, é cortante, age por aprofundamento.

Devaneios para suportar o circo de horrores que é o IML e o cheiro da morte.

Vinha sendo assim há algum tempo. Nas aulas mais chatas da Medicina, eu tinha que fazer manobras de sobrevivência emocional contra o tédio. Restava o devaneio e a escrita automática. Através da imaginação eu fazia a minha guerrilha particular. Construía a minha Sierra Maestra, eu guerrilheiro mudando o mundo apenas com a força da minha caneta. Meus primeiros esboços dramáticos surgiram deste confronto. Sou grato a todos aquele professores extremamente chatos que me tornaram o que eu sou hoje.

Tivemos ensaios à noite e eu levei o aparelho de som. Esboço do primeiro roteiro.

Anotação: Deveremos trabalhar com as nossas memórias emocionais. O que aconteceu? O que era verdade, o que era mentira? Meia folha dobrada, presa na agenda, onde se lia 1964: Pai da Márcia organizando grupo dos Onze em Três Passos/ Pai do Júlio fugindo para Caxias/ armas em casa/ Prefeito de Camaquã se suicida (lembrança do Hermes).

Cena 1-3:

64 = revolução versus golpe. Localizar várias cenas curtas no interior. Forqueta, Três Passos, Camaquã, Porto Alegre, Garibaldi. Colonização alemã, italiana e fatos acontecidos na Capital.

Cena 3:

Chegada de Júlio do interior.
Cena 4:

Golpe de estado.
Cena 5:

Fuga para Forqueta.
Cena 6:

Prisão do Coronel Paiva, nosso vizinho. Partidão.
Cena 7:

Organização do grupo do Onze. Guerrilha. Gravação da Rádio, Discurso do Brizola, Jango.
Cena 8:

Resistência cultural: Arena, Opinião e Oficina. Censura. O mundo em revolta. Meus irmãos falando das passeatas, da polícia. Eu estudava, jogava futebol.

Cena 9:

Ano de 1968 – pichação, protestos, manchas nos muros; apogeu de um projeto cultural versus a censura.


Cena 10:

Copa de 70 – tortura. Morte.
Cena 11:

Surf, praia, Sta Catarina, alienação total. Podes crê.
Cena 12:

1975 ??? – Minha entrada na faculdade – meio universitário, filmesalternativos, teatro, livros proibidos. As mentes se abrem.
Cena 13:

1978 = Abertura / anistia. Mentira da liberdade.
Cena 14:

Eleição 1982.

Cena 15:

O sono não acabou.

Essa é a verdade que nos ensinaram e o nome desta verdade é mentira. Verdade versus mentira / realidade versus interpretação.

Este é o roteiro mais antigo que encontrei nas minhas dispersas anotações.

domingo, 9 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (8)



Fevereiro, 24.

  1. Morre Tennessee.
  2. Nada.

A morte e a memória da memória.

Morreu o dramaturgo americano Tennessee Williams no Hotel Elysée em Nova Iorque. O dramaturgo americano sempre esteve entre meus favoritos. Anos antes, fiz uma improvisação na aula da Maria Helena Lopes. O Ivo Bender, uma das minhas inspirações como escritor, e era – surpreendentemente – meu colega. Ela organizou uma cena. Ivo interpretava um diretor de teatro que encenava “Um Bonde Chamado Desejo”. Eu representava um ator da peça e a Gracinha era a atriz que, na trama, era casada comigo e tivera um caso com o diretor. Enfim um triangulo amoroso que se entrecruzava com o trio Stanley Kowalsky, Blanche de Bois e Mitch, personagens de Tennessee Williams.

Dias depois, ainda na mesma semana, encontrei o Ivo Bender no meio de uma manifestação estudantil. Ele me puxou para o balcão da Lancheria Matheus. O pau quebrava com a chegada de Brigada. Ele falava com entusiasmo, analisando a simetria da situação dramática e decompôs a cena. E eu preocupado com o corre-corre e a dispersão da passeata. Levou algum tempo para entender que a clareza da análise do Ivo Bender foi minha lição de dramaturgia.


Nada.

E assim o verão de 83 passou assim, entre convulsões, despedidas, gravações, desatenção e aniversários. O mundo cada vez mais passou a depender da bondade de estranhos.


Março, 1°, terça-feira.
  1. Tomografia.

O mês começou com uma tomografia computadorizada que levei, junto com outros exames, para avaliação do Dr. Jaderson Costa que estava assumindo o caso. Ele mudou a medicação, fez uma interpretação nova do eletroencefalograma. Um padrão de ponta-onda determinava uma alteração na medicação e no diagnóstico anterior que era de Síndrome de West. Esta tinha prognóstico, como dizem os médicos, reservado. O que significava em linguagem leiga, muito grave. Já o padrão ponta-onda oferecia uma esperança, pequena, mas sempre uma esperança, o que é um alento, mesmo quando esta se revela uma pálida expectativa de uma vida sem luz. A característica da esperança é esse caráter de azarão, de zebra, é este vôo do besouro que sempre esperamos quando o forte enfrenta o fraco. Esse espectro de possibilidades adversas muito superiores e potentes do que as favoráveis, determinam o estoicismo, que nos mantém vivos.

O uso de Clonazepan com Ácido Valpróico esbateu as convulsões e deu alento. O futuro não confirmaria aquela melhora, mas foi uma vitória temporária num mar de escombros emocionais.


Março, 18.
  1. Trenaflor.

Estreou no Teatro Renascença da peça Trenaflor. Foi o segundo trabalho do grupo Vende-se Sonhos e por isso, cheio de expectativas. Já haviam emplacado um sucesso com School´s Out e o momento era de sedimentar o teatro no movimento cultural. O grupo faria ainda um terceiro trabalho discutindo a produção de cinema no Sul: “Das Duas Uma”. Enquanto School´s Out colocava em movimento as escolhas profissionais e o período preparatório para a Universidade, Trenaflor era uma passárgadas porto-alegrense que tratava de confrontar o sonho neo-hippie de uma vida em comunidade versus a agruras da vida adulta . O teatro lotado, não consegui ingresso. Falei com o Jorjão, técnico do teatro Renascença, que abriu a porta do corredor da área administrativa. Entrei na sala de apresentação pela porta do palco. Sentado no chão assisti a uma apresentação emocionante. Marcos Breda, Cleyde Fayad, Angel Palomero e todo o elenco estavam muitos bem. Breda entraria no Bailei em 85 fez um poeta pornográfico que arrancava aplausos do público. Foi muito emocionante. Quando a peça terminou não fui no camarim falar com o pessoal. Cleyde e todo o elenco acharam que eu não tinha o gostado. Na verdade, não fora no camarim por que tinha gostado demais. Cheguei em casa e escrevi um poema para o grupo.

Eu queria ter feito a peça.



Março, 23, quarta.

  1. Açorianos.

Dia de glória. Recebi o prêmio Troféu Açorianos de Melhor Diretor e “Não Pensa Muito Que Dói” foi eleito o melhor espetáculo de 82. Haidée Porto foi apresentadora do prêmio e, muito feliz, fazia sinais para mim tentando me avisar da premiação, mas eu não entendia. A razão da sua felicidade é que, além da amizade que nos unia, o “Não Pensa” já estava programado para ser o primeiro espetáculo a se apresentar no projeto criado por ela, que faria história lançando muitos dos novos artistas do emergente teatro gaúcho. O nome do projeto era Unicena.

Superamos o magnífico espetáculo, “Reis Vagabundos”, da Maria Helena Lopes, este sim, na minha opinião, o melhor de 82. Mas pouco importava a justiça, tinha 26 anos, uma mulher, um apartamento, uma Brasília usada e um filho com uma lesão cerebral. Nada mais justo do que eu receber um prêmio injusto.


Março, 30, quarta-feira.

  1. Imposto de renda.
  2. Telefonemas.
  3. 1º de abril.

Imposto de renda.

Entreguei o Imposto de Renda. Não atingira a renda mínima que determinasse a obrigatoriedade da declaração, mas o fizera para recuperar uma pequena restituição originada de uma série de comerciais de TV cujos cachês tiveram retenção na fonte.


Telefonemas.

Telefonei para o Ivo Bender e falei com o Sérgio Silva. Não sei porque nem para quê, mas com certeza foi importante de outro modo não anotaria na agenda. Até hoje são duas pessoas que eu admiro muito. Ligaria para eles agora, mesmo que não tivesse nada para falar com eles.

1º de abril.

Além disso, este dia teve uma importância extra. Foi no dia 30 de março que começaram oficialmente os ensaios de uma peça que naquele momento tinha o título provisório de “1° de Abril”. O início dos ensaios foi à véspera do aniversário do golpe, mas eu não percebera naquele momento que nós vivíamos mergulhados numa linguagem que nos anteciparia, inventado-nos.

A idéia de 1° de Abril era um pensamento sem dono que pairava pela cidade. Uma nuvem de possibilidades rondando as mentes mais acuradas. A Marília, algum tempo depois de sair da peça me contou que outro diretor de teatro da cidade lhe convidou para fazer uma peça que acontecia em Porto Alegre no dia do golpe militar e teria o dia dos bobos como título. Marília respondeu:

- Essa peça existe, o Júlio já está ensaiando.

No dia seguinte, véspera do feriadão da Páscoa estudei Urologia e levei uma fita para o Gilberto Perin na TV Gaúcha. Era uma fita para copiar o clipe da música do Flávio Bicca Rocha, tema do “Não Pensa”. Em 2005, recebi a cópia daquele clipe. Uma obra de arqueologia, gravada nas dependências do DAD, antes das reformas, e guardava toda aquela arquitetura decadente, caótica e fascinante da escola de teatro.

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (7)


Janeiro, 27.

  1. Balanço do teatro.
  2. Visita do Flávio.
  3. Saída da Marília.


Balanço do teatro.

Janeiro estava se encerrando. O movimento teatral gaúcho se resumiu a três peças de teatro, todas de grupos novos. “Murro em Ponta de Faca”, de Augusto Boal, na Sala Álvaro Moreira, direção de Bety Fano, na qual trabalhava um ator que eu ainda não conhecia e que veio a ter um papel muito importante no Bailei: Fernando Severino. “A Mãe”, de um grupo chamado “não semo istrela mas briamo” e o “Ciclo da Inconstância”, do Euclides Dutra de Moraes, o Kydo, premiado junto comigo no I Concurso de Dramaturgia Qorpo Santo. A peça os “Reis Vagabundos” de Maria Helena Lopes fora escolhida para viajar pelo Brasil no Projeto Mambembão. De São Paulo veio uma peça dirigida pelo primeiro mímico brasileiro, Ricardo Bandeira. “Todo o Mundo Nu” e esteve em cartaz no Teatro Presidente. Não vi e não me arrisquei a ver.

Visita do Flávio.

Recebi a visita do Flávio Bicca Rocha e uma reunião com algumas pessoas da peça “Não Pensa Muito Que Dói”, obra de encerramento da faculdade de Direção Teatral. Já havíamos tido alguns ensaios esporádicos no final de 82 e Flávio foi à minha casa naquela noite de janeiro para me questionar sobre o que faríamos nesta nova peça. Na verdade, isso já era um hábito dele. Já havia feito isso no ano de 82 quando surgiu no meio da noite para saber como se desenvolveria a proposta de fazer uma crítica ao DAD através da peça “Não Pensa Muito Que Dói”. Este tipo de dúvida sempre assolou a personalidade de Flávio, sempre tão hamletiano em seu drama de ser ou não ser. Nunca me esqueço que depois da estréia do “Não Pensa Muito” no teatrinho do DAD em 82, saímos juntos para comemoram no apartamento da Marília Rossi que morava no centro, na Jerônimo de Ornelas. A apresentação tinha sido um sucesso, nunca tinha visto o público de um teatro rir tanto. Eles riram de cada piada, se reconheceram e se emocionaram de uma forma que eu não esperava. Não podia imaginar, pelas experiências vividas por mim até então, que o teatro pudesse ser uma ferramenta a produzir tal intensidade emocional. Estávamos ainda em estado de choque, elevados pelo sucesso. Foi uma evidência que teatro não precisava ser uma coisa chata. Tivemos a certeza que havia um caminho viável e eu embarcaria nele atrás deste sonho. Entramos no fusquinha do Flávio e ele disse uma das frases mais emblemáticas, que representa a ele mais do que qualquer outra que já escutei. Ele simplesmente ligou o motor e sem olhar para nada disse:

- Agora eu acredito na peça. – e ligou o motor do fusquinha.

- Agora não precisa mais – retruquei - depois da estréia qualquer um é capaz de acreditar. Tive vontade de mandá-lo a merda. Sempre pensei que um artista, um verdadeiro artista, tem que acreditar antes e justamente por isso, por esta visão da aurora antes do amanhecer é que é um artista. Contive o ímpeto e apontei uma vaga para estacionar.

O mais engraçado é que um ano depois dessa conversa estava ensaiando Bailei na Curva e os personagens Torugo e Paulo Renato desfilavam suas fragilidades num fusquinha.

Saída da Marília.

Ainda em dezembro de 82 reuni o grupo para explanar o projeto de utilização de um roteiro análogo ao do “Não Pensa Muito”, porém num universo mais amplo. Foi aí que estabeleci que a questão golpe militar versus revolução e o dia 1° de abril versus 31 de março seria o ponto chave da idéia da nova peça. Ali eu estabelecera a metáfora que geraria toda a criação do “Bailei na Curva”. Não tenho anotações de quem estava presente, talvez o Flávio, a Regina e Torquato estivessem. A Claudia e a Marília também, mas não tenho certeza. Tenho anotações de um ensaio preliminar. Foi numa academia de ginástica na Rua Rodolfo Gomes e o Torquato e a Marília improvisaram pela primeira vez a cena do carro. Eu levara a proposta de trabalhar com as nossas lembranças. Torquato criou um Chevrolet 61, com portas imensas e grandes espaços internos e junto com a Marília que improvisou a esposa, foram passar o domingo na beira do Guaíba. Era uma cena deliciosa com crianças brigando sentar na janela do carro, a mãe gritando, a farofada do domingo à beira do Guaíba. Na praia de Ipanema, areia grossa, guarda-sol, bóias de câmara de pneu, e a mãe pedindo desesperada para os filhos não nadarem lá no fundo. Com certeza foi o germe da cena sobre um fim de semana em Tramandaí da peça “Cabeça-quebra-cabeça” de 84 e da cena do carro do “Bailei na Curva” realizada meses depois.

Quando nos despedimos na esquina da Av. Getúlio Vargas com a Rodolfo Gomes, a Marília me disse que não faria a nova peça . Falou como se fosse uma coisa banal, sem muita importância. Fingi que não sentia nada e lhe dei dois beijos de despedida. Lamentei não ter insistido nem falado da importância dela, que sem ela o “Não Pensa” não seria o que foi, mas calei. Marília fora essencial no processo de criação e um conforto emocional. Ela foi minha primeira namorada na Escola de Teatro. Ela era motivo de chacota, pois num meio liberal do teatro ela se vangloriava de ser virgem. Quando começamos a namorar, todos pensavam que ela teria perdido a virgindade comigo. Não foi verdade. Eu é que perdi a minha virgindade estética com ela. Pois ela me ajudou a entrar no mundo teatro e me apaixonar por esta estranha arte de representar.

Depois de dois beijos foi embora. Como bom leonino que sou, segurei o abandono fingindo que nada acontecera. Comecei, imediatamente, a pensar em quem entraria no seu lugar.

Fevereiro, 10.

  1. Márcia.
  2. Interlúdio.

Márcia.

A solução estava em casa. Falei com a Márcia do Canto e ela entrou na peça. Casados há pouco tempo, Márcia trazia a marca do sucesso em tudo o que fazia. Fora uma das responsáveis pelo sucesso de Schools Out fazendo o aluno ridículo, onde se destacava pela caracterização. Depois, na simpática Tita dividindo a cena com o amigo surpreendido pelo pai com maconha no bolso da jaqueta e, por fim, arrancando suspiros da platéia com suas cenas sensuais mostrando toda a beleza que encantou Caetano Veloso. Uma das mulheres mais linda que já conheci, tudo que ela fazia dava certo.

Esse era o último dia de inscrições para o Prêmio Qorpo Santo e, no dia seguinte, o aniversário da Dona Virgínia, minha mãe. Um churrasco na Rainha do Mar com toda a família reunida. Discussões políticas polarizadas entre meu irmão, à direita, e meu cunhado e minha irmã, à esquerda. O muro ainda não havia caído nem a exclusão mostrava a sua violência globalizada.

Interlúdio.

Numa pequena sala na rua São Manuel, gravei o áudio do filme Interlúdio, direção de Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase. Era um filme de curta metragem em 35 mm que fora filmado durante carnaval de 82. No elenco tinha a Márcia do Canto, Matinha Biavaschi, Lúcia Serpa, Cleide Fayad, Marília Rossi. As locações foram no Supermercado Zaffari da Fernando Machado, no tradicional trailer de cachorro quentes chamado Zé do Passaporte, no extinto Cine Coral, numa esquina da Santana e no próprio apartamento do Giba na Cabral. O filme saiu muito bem, mas o áudio ficou muito carregado de um sotaque exageradamente gaúcho. Era o início da passagem do Super 8 para o 35 mm o sistema de produção do grupo veio a se realizar plenamente na Casa de Cinema e acabou gerando vários longas metragens entre ele Verde Anos e Me Beija, filmados durante o ano.

“Interlúdio” participou do Festival de Cinema de Gramado. Não ganhou nenhum prêmio e só voltou a ser apresentado no projeto da Curtas Gaúchos na RBS TV, 18 anos depois. Pode ser visto em retrospectivas no Canal Brasil.

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (6)



Janeiro, 18.
Joguei futebol.
Não posso afirmar com certeza, mas tenho a impressão que nesta época se formou o grande e único time de futebol da Escola de Teatro. O que convenhamos dentro de uma Escola de Teatro nunca foi muito fácil juntar cinco pessoas gostassem de jogar futebol de salão. O teatro ainda não tinha o apelo de mídia que a Televisão e, em especial, as novelas conferiram à Arte Dramática. Entrava no teatro queria fazer teatro. Não quem visasse televisão, novelas e muito menos cinema. O destino era o palco. E espetáculo futebolístico não era nenhum festival de delicadezas.
Rememorando
O time era formado por vários atores como João Batista Dimmer, Lui Stassbuger, e por diretores de teatro como Cláudio Cruz, e Beto Ruas. Tinha ainda a participação de um dos gênios da cenografia: Nelsinho Magalhães. E o time se completava com Osvaldo, mais conhecido como Vavá, o folclórico porteiro.
Era ele que marcava os jogos e levava as camisetas e agitava a turma toda.
Durante o curso era freqüente a necessidade de ensaios durante as madrugadas e o Vavá era quem mantinha a Escola aberta fora do expediente. No começo dos anos 80, em meio a uma intensa crise econômica Vavá, sua mulher e seu filho foram despejados. Sem lugar para morar, mudaram-se para a Sala dos Alunos do Departamento. Uma situação totalmente irregular, mas frente a unanimidade Vavá, todos encobriam. Uma família morando no coração de uma Universidade Federal não deixava de criar situações inusitadas. Era freqüente em aulas de Expressão Corporal, que terminavam perto quase uma hora da tarde, acontecer de, em pleno relaxamento, um cheirinho de um bife ou outra fritura qualquer invadir a sala de aula. Demandava muita concentração evitar os roncos do estômago.
Em compensação, os ensaios madrugada adentro eram clandestinamente facilitados por ele. Atualmente ele deve cobrir as folgas de São Pedro na portaria do céu. Qualquer problema, em qualquer hora, é só falar com o Vavá.
Janeiro, 19.
Aniversário da morte de Elis Regina.
A notícia
Um ano antes, Pedro ainda na barriga da Márcia. Estava almoçando, a TV ligada, sala do apartamento 202 na Av. Getúlio Vargas no Menino Deus. Acho que a Márcia estava no quarto e entrou no ar a chamada de informe especial para noticiara a morte da cantora Elis Regina. O ar sumiu de dentro do apartamento. Assim como eu, o Brasil inteiro congelou com a notícia. Dois dias depois Pedro nasceu e a notícia, ainda no hospital, era que o legista, colaborador do regime de exceção, diria que a causa da morte teria sido o uso de cocaína associado ao álcool.
Os jornais falavam do primeiro ano da morte de Elis Regina. Um especial na TV Bandeirantes e outro na TV Gaúcha que eu me programei para assistir. Na Zero Hora, uma entrevista que eu anotei na minha agenda:
A vida não tem paetês. A gente inventa um brilho para ela ficar melhor. Quando eu era pequena em Porto Alegre minha família teve que escolher entre comer ou ter um piano. O brilho que eu inventei depois, então sem piano, fui cantar e fazer de conta que eu era a melhor cantora do Brasil.
A criação é resultado de processo reticular de suportar as perdas e se inventar uma saída onde não tem saída. “Vida, esta causa perdida”, dizia Antonio Abujamra e Bráulio Pedroso escreveu que a vida é “uma aposta sem ter resposta”. Quando a psicanálise entrou na minha vida descobri o pensamento agudamente renovador de Wilfred Bion. Seu último texto publicado em vida foi “Como tirar proveito de um mau negócio”. Estas afirmações ganham um efeito nas palavras de Elis Regina. Há algo que insiste em todos nós. Resistir é preciso e é imperativo criar para sobreviver.
Janeiro, 20.
Rainha do Mar
Garrincha
Fomos passar o fim de semana na Rainha do Mar. À noite, deu na TV que o Garrincha morreu.
Janeiro, 21.
Aniversário Pedro.
Fizemos a festa do primeiro aniversário na praia. Mesa posta ao ar livre, doces e bolo de aniversário, balões e a faixa desejando “Feliz Aniversário”. Quem passasse pela frente de casa imaginaria que era festa comum. Todos alegres, comendo e bebendo. Cantamos “Parabéns a Você”, piadas, gargalhadas. Só aniversariante, Pedro, não fixava o olhar e não podia assoprar a vela. Havia uma alegria desconfiada no ar.
Na madrugada assisti ao filme “Garrincha Alegria do Povo” num aparelho de doze polegadas com uma imagem cheia de chuvisco.