domingo, 27 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (17)


Julho, 22.
  1. Ensaiamos das 16 horas até as 19 horas.
  2. Grêmio x Penharol, Libertadores da América

Neste período de ensaios Flávio começou a ligar para a Márcia. Ligações seguidas, muitas horas de conversa, voz melosa, clima íntimo. Eu estava na sala dos fundos, escrevendo na Olivetti Lexicon 80 que surrupiara do meu pai, e fui até a sala de estar. Respirar um pouco. A salinha dos fundos era para ser o quarto da empregada, mas se tornara meu escritório. Não tinha uma boa ventilação e a luz era artificial o tempo todo. Precisava de ar e de sol. Parei na janela aberta, olhando o movimento de carros da Getúlio quando percebi que Márcia seguia no telefone. Achei estranho que eles conversem tanto tempo. Percebo que há alguma coisa se esboçando. Um clima. Controlo o ciúme. Será o ele agüentaria toda a barra, Pedro, grana, e tudo o mais. Por um momento imagino que ela vai embora com ele e sinto um alívio. Imediatamente me culpo por isso. Márcia está muito carente. O erro deve ser meu. Por outro lado, nos ensaios, os dois fazendo cenas conjuntas de casais facilita o aparecimento de um clima amoroso. Os atore se entregam as emoções de seus personagens e acabam por assumir tal emoção. Por isso, há tantos casamentos entre parceiros e parceiras de palco. Teatro é um negócio perigoso. Além disso e ao mesmo tempo, este clima latente deixa os dois muito constrangidos na cena. Tínhamos que representar uma cena que descrevesse o momento de morar sozinho, entre o final da adolescência e o início da vida adulta. Momentos de decisão. A saída da casa dos pais, os novos modelos de relacionamento, as dúvidas frente ao casamento e o rescaldo do amor livre dos anos 60, reciclado nos 80. Márcia e Flávio se atrapalhavam. Não consigo terminar a cena e eles não conseguem improvisar. Mando todo o mundo sair da sala de ensaio. Ficamos nós três. Peço que eles improvisem de novo. Pego uma máquina de datilografia da sala ao lado e começo a escrever ao mesmo tempo em que eles atuam. O taque-taque da datilografia anda um pouco atrás da cena. Um tempo certo para a reflexão e estou com eles em cena. Taque-taque das teclas. Vozes exaltadas. Eles discutem até que se faz um silêncio. O taque-taque perde o ritmo. Um na frente do outro e eu na frente da máquina. Levanto a cabeça, vejo os dois parados, olho no olho. Baixo a cabeça e escrevo: diz Paulo não dói. Falo em voz alta. Márcia repete. “Diz Paulo, não dói!”. Taque-taque. Eu te amo. – sugiro, salto no escuro, fala para ela - Eu te amo.

Ele fala “eu te amo”.

  1. Elipse do ciúmes

Atores entram nos processos de forma ingênua, brincam com a radioatividade das emoções. Todo grande ator é tomado pela personagem de tal modo que freqüentemente se confunde. No nosso processo tal confusão se prestava ainda mais, pois as personagens eram extraídas de nós mesmos e não sendo exatamente nós, poderiam ter sido ou acontecido, pois se inseria no rol de possibilidades que cada um carrega dentro de si.

Um beijo sela o desfecho da cena. Achei o final da cena e resolvi um problema conjugal sem precisar discutir a relação. Aguentei no osso com um futebolzinho para suportar.

Na mesma noite, assisti primeira partida da final da Taça Libertadores da América, Grêmio, da Azenha, enfrentando o Penharol do Uruguai, no apartamento da Getúlio Vargas. Os vizinhos da frente são uns colorados fanáticos. Eu era meu costume gritar quando o Grêmio fazia gol, pois me incomodava um pouco este tipo de invasão. O Grêmio saiu ganhando com gol de Tita de cabeça e eu, como de costume, não vibrei. No segundo tempo, gol de Fernando Morena, do Penharol e tive que escutar uma gritaria da vizinhança. O Grêmio suportou uma tremenda pressão, mas veio com um empate. Fiquei calado, daqui a sete dias, a finalíssima seria em casa, Porto Alegre.

Em algum momento, os ventos teriam que soprar a meu favor.

Julho, 23.

  1. Ensaiar uma reunião dançante.

Levei para o ensaio uma eletrola portátil que liga puxando o braço para fora. Mais minha coleção de compactos e todos os discos dos Beatles que eu tinha. Muitos amealhados sorrateiramente dos meus irmãos mais velhos e outros que apareciam lá em casa esquecidos depois de algumas reuniões dançantes. Regina, Claudia e Márcia levaram uma boa quantidade de figurinos. Ligamos a eletrola e nos vestimos. Flávio colocou a calça boca de sino de veludo bordô do irmão da Márcia e uma camisa cacharel. Márcia vestiu uma mini-saia e o Hermes falou:

- É a Betiranha! – Assim o nome da personagem do conto de Júlio César Monteiro Martins entrou na peça. Poderia ter mudado para Katiranha, Luciranha, Lecaranha. Mas seria sempre uma Betiranha. Ficou. Anos depois conheci Júlio César Monteiro Martins no rio de Janeiro. Ele assistiu a peça. Ele me deu um livro de presente e na dedicatória fala dos pequenos plágios. Um pouco de mágoa, mas também um pouco de admiração. Mútua.

E assim, passamos todos o ensaio dançando e se vestindo. Tínhamos aí o Torugo, a Betiranha e a cena de reunião dançante. Mais uma vez, não houve ensaio. Foi mais uma vivência.

Este tipo de exercício foi o grande propulsor do processo e também a grande dificuldade nos anos seguintes. Nossa virtude é nossa desgraça. Como o resultado surgiu aparentemente muito fácil, parecia que se tratava de uma conquista sacramentada. Parecia que tinha sido fácil e que o resultado só dependia de aplicar uma forma. Além do fato de ainda sermos muito verdes para alcançar o objetivo alcançado, em tudo o acontecido superava o esperado. Levamos anos absorvendo os resultados do “Bailei na Curva”. Invariavelmente todos do elenco tiveram crises criativas e ou se afastaram definitivamente ou temporariamente do teatro. Sem contar que se criou a ilusão que todos criaram a peça independente dos outros. Ganhamos na vivência, mas perdemos na reflexão.

sábado, 26 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva (16)

Junho, 25.

  1. TV.

Assistimos a entrega do Prêmio do Festival Universitário pela RBS TV. A música começava a decolar e alinhavava uma trajetória própria. Elaine Gaissler apresentou a música no projeto Unimúsica e foi um sucesso. Uma gravação com arranjo muito popular e na voz de Elaine popularizou a canção. Mesmo sem disco na praça foi a mais pedida de muitas rádios e era sempre usada na divulgação do espetáculo. A peça carregava a música e a música alavancava a peça. Um casamento perfeito. Ainda no final daquele ano foi gravado um show musical onde tocaram os melhores músicos do Estado. Flávio, ainda um desconhecido, fechava o programa que foi apresentado na programação de virada do ano seguinte. Haviam belas tomadas áreas onde desfilavam as ruas de um porto não muito alegre. Completaria o circulo da música num clipe feito pelo Gilberto Perin para o programa Fantástico. Horizontes se abriam para bailar pelo Brasil.


Junho, 29, quarta-feira, dia de São Pedro.
  1. Iniciamos os ensaios diários do “Bailei na Curva”.

Com o avançar do processo surge a necessidade de uma freqüência maior de trabalho. Os espaços dentro da Faculdade estão cada vez menores. O Flávio ficou de conseguir um lugar na ABIPEX. Era um escritório desativado de oficiais do Exercito emprestado graças a tráfico de influência do Ubirajara, pai do Flávio. Marcamos a reunião. Entro numa sala de pouco mais de trinta metros quadrados. Mínima para ensaios. Única vantagem é que tem uma sala contígua com máquina de escrever e escritório e, na sala principal, duas portas em cada extremo da parede o que pode simular as saídas. O resto é péssimo. Úmida, pouca luz e sufocante. Reclamo das condições e, com isso, Flávio se irrita. Alguém impede que a briga tome proporções maiores. Tenho que planejar de forma específica toda a concepção das cenas.

Apesar destes problemas, as férias da Faculdade começaram e eu tinha ainda mais tempo livre. Aqui inicia a grande virada do processo de ensaios. Sabia que teria trinta dias para terminar a peça. E passamos a trabalhar dois de ensaios. O terceiro turno eu usava para escrever a peça. Já tinha feito vários esboços, mas sempre com vergonha de mostrar. Já tinha escrito as famílias. Imperativo era aprofundar cada vertente social. Uma família representando a ideologia militar. (Experiências do Flávio). Outra de empresário, ricos de direita e apoiadora do golpe (minha família). A família de intelectuais de esquerda (da Márcia e da Claudia). A família de classe mais baixa, ligada ao operariado e simpatizante do movimento trabalhista e a classe média bem média representada por alguém ligado ao funcionalismo ou a pedagogia de base (Hermes e Regina). Tinha na minha mente estas cinco vertentes. Não dá para dizer se foi uma coincidência ou apenas uma amostragem estatística que calhou o fato de que cada um dos integrantes do grupo mais perto ou mais longe tinha, de um modo ou de outro, uma ligação com estas vertentes. O fato era que estávamos frente a uma indedibilidade.

Imaginei praticáveis, maiores, menores, altos e baixos que corresponderiam as classes sociais e definiriam os espaços cênicos ao mesmo tempo que viabilizariam ensaiar naquele espaço diminuto da ABIPEX.

Um novo eletro e finalmente as convulsões do Pedro estavam sob controle. A mudança da medicação fez efeito. Agora é esperar que ele evolua. Levei Pedro para passear na Praça Israel. Com um olho brinco com ele, com outro observo outras crianças. A luminosidade de Porto Alegre nesta época do ano chega a constranger o meu olhar.

Julho, 14.

  1. Grupo da Caixa Econômica
  2. Ensaios Bailei.
  3. Hermes falta vários ensaios em seqüência

Ensaios com o pessoal da Caixa Econômica nas quintas e sextas. Em agosto teremos ensaios nos sábados.

Ensaio do Bailei nos outros dias: segunda, terça, quarta, sábado e domingo.

Hermes faltou o ensaio. Fico muito irritado. Os atores me olham. A frustração quando se planeja um ensaio e alguém falta é muito grande. Nestas horas se percebe o amadorismo do nosso teatro. Os resultados são muito além das condições para que eles ocorram. Hermes não é de faltar ensaio, pelo contrário, é um ator muito compenetrado e obstinado. Porém, vem faltando. Tenho na minha cabeça entre aquelas crianças que 64 brincavam na rua, um deles tem que morrer. Ainda não havia decidido qual, quando a seqüência de faltas do Hermes aconteceu. Ele deve ser o cara que vai para a guerrilha, ele será nosso mártir, o herói da peça se apresenta através da falta.

Pedro desapareceu.

Quando que o nome une o personagem ao meu filho, levo um choque. Eu decidi a morte e ela se apresenta sob a forma de Pedro. Duplo impacto.

Julho, 21.

  1. Não dei curso.
  2. Preciso de um tempo para pensar.

Dormi mal pensando no Pedro morto. As imagens se mesclam, Pedro-Hermes e Pedro Conte, unidos pelo acaso. Insônia. Falta de ar, tenho uma crise se asma. Passo a noite lendo o Diário de Che Guevara. Seus últimos momentos na La Higuera, onde perdeu as botinas, dispnéico, faminto e cercado. Bichos caçados de noite e de dia. Ele também tinha asma.

Leio um conto do Júlio César Monteiro Martins. O clima dos contos dele é uma referência para a peça. Num dos ensaios levo para o elenco e leio. J.C. Monteiro Martins é um contista da nova geração e tem a mesma idade que eu. Não está, por isso, isento dos atos da ditadura, embora, assim com eu, não tenha sido protagonista de ações heróicas. E é justamente isso que me interessa. Uma vida comum que viu um Brasil ser encarcerado e não percebeu. Vai saber vendo a peça. O teatro purgando esse grande furúnculo da cegueira coletiva, a omissão. Última cena: após a leitura do texto do J.C.Monteiro Martins entra a música do Flávio Bicca em play-back. Atores começam a entrar em cena como se estivessem na Rua da Praia ou na Redenção, atravessam a cena. Um grupo faz teatro na rua contando uma história do Brasil.

Passei o resto da noite acossado pelas exigências do pensamento.

  1. Elipse que a insônia não viu.

A noite mal dormida, encobriu um pedaço significativo da cosntrução do Bailei. Mal sabia que estava frente a cena mais emblemática da peça. Naquele momento era apenas um irritação de um lado e excesso de trabalho de outro. Tinhamos um hiato narrativo e a cena que só realizaria no mês de setembro quando, na mesma noite, improvisamos a cena quando Pedro sai de casa e cai na clandestinidade e o encontro da Ana, a namoradinha de infância de Pedro, com Dona Elvira, mãe de Pedro. Faltando em seqüência, Hermes Mancilha, estava se transformando no personagem principal da peça. Mas naquela hora ninguém sabia, nem podia imaginar. Um luminusidade obscura nos conduzia.

Nosso mérito é que seguiamos a escuridão.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (15)

Maio, 10.

Ensaio.

Flávio chega no ensaio com um gravador cassete. Diz que tem uma coisa para mostrar. No palco Hermes se aquece. Claudia está mudando de roupa. Márcia conversa com a Regina na primeira fila do Auditório Tasso Correa. Eu estou com uma imensa folha de desenho onde estão anotadas as cenas programadas numa coluna e noutra os eventos de época. Flávio aperta o play. A música começa a tocar. Há muito tempo que ando. Tudo pára. Nas ruas de um porto não muito alegre. Regina se aproxima. E que, no entanto me traz encantos. Hermes pára de se exercitar e Claudia se apóia no palco. Um por de sol me traduz em versos. Flávio observa cada um. De seguir livre, muitos caminhos, arando terra bebendo vinho. Márcia apóia os cotovelos no proscênio. De ter idéias de liberdade. Me deu uma vontade de chorar. De ver amor em todas idades. 64, 66, 68 mau tempo talvez, anos 70 não deu pra ti e nos 80 eu não vou me perder por aí. Se fosse um filme, poder-se-ia dar um super close em cada um e teríamos o retrato emocional do grupo.

O Hermes, sempre tão sardônico, quebrou o clima dizendo:

- O jingle da peça já está pronto. Agora só falta o texto.

Rimos. A ironia na hora certa nos salvou do melodramático.

Foi neste meio dia que eu levei vários livro de contos para pesquisa. Li para o grupo um texto do Júlio César Monteiro Martins. O título era muito bom: Sabe quem dançou? Falei para o pessoal que este seria um título que eu usaria se a idéia fosse minha. Hermes, de novo, certeiro e mordaz, falou:

- Então põe aí Bailei na Curva Ui Ui Ui Bem Feito.

Rimos novamente. Foi de comum acordo que se decidiu que Bailei na Curva era ótimo, mas que era melhor deixar para lá o “ui ui ui bem feito”.

Fumaça branca: habemos título!

Maio, 16 até 28 de junho.

Faculdade de Medicina.

Foi um período de provas. Patologia IV, Cirurgia Pediátrica, Cirurgia Geral e Cirurgia Plástica. Nesta tirei a minha melhor nota, 9,5. No dia da prova o Careca como era conhecido e depois Dr. João Carlos Schelletti quis me ajudar numa questão em todo o mundo tomou errou. Era uma técnica para pessoas com escaras de decúbito. Lesionados, paralisado, por permanecerem na cama muito tempo acabavam tendo escara que era de difícil tratamento. O procedimento consistia numa amputação da perna e um reaproveitamento das artérias de membro inferior e dos músculos formando um almofadão que impedia as escara. Como era um tema que eu tinha contado direto, Pedro tivera várias escara, meu interesse pelo assunto e meu espanto pela violência do tratamento, acertei a questão.

Flávio avisou o elenco que inscrevera a música para o 3º Festival Universitário de Música Popular Brasileira. Era uma tentativa de reviver o clima de festival. Ninguém aprovou nem desaprovou. Era uma decisão dele.

Alternei as noites entre o curso para o pessoal da Caixa e ensaios até o dia 29.

Junho, 18.

Festival Universitário no Salão de Atos da Reitoria.

Flávio Bicca Rocha apresentou a música Horizontes no 3º Festival Universitário de Música Popular Brasileira. Foi na última noite da eliminatória. E se classificou para a final.

Junho, 19.

Finalíssima do Festival.

Flávio tocou e cantou muito bem e a regência do maestro Arlindo Teixeira estava brilhante. Uma introdução de violinos maravilhosa. Horizontes, música tema do Bailei na Curva, ficou em primeiro como Música Mais Popular – Prêmio Secretaria de Turismo – RS e, em terceiro pelo júri formado por Celso Loureiro Chaves, César Dorfmann, Geraldo Flach, Jerônimo Jardim, Ivan Fetter, Kim Ribeiro, Nei Lisboa e Sergio Napp. Foi uma festa. Carregamos o Flávio Bicca nos braços até o palco. Ele recebeu o prêmio e deram a palavra para ele. O elenco todo gritava para que ele fizesse propaganda da peça.

- Esta música faz parte de uma peça que vai estrear no Teatro do IPE. O nome da peça é... Como é mesmo o nome da peça?

Ele simplesmente esquecera o nome da peça. Coisas de Bicca.

Comprou uma TV 14’ polegadas de prêmio.

Junho, 20.

Plano do ensaio.

Rabisco lateral: Não sei o que fazer. Levo o exercício da Cena Cantada (Viola Spolin) para ver o que acontece. Rabisco lateral: Não estou lavando fé que dê em alguma coisa.

O enunciado é bem simples. Apresentei a situação. Este tipo de exercício seria especialmente difícil para mim, pois eu perco o ritmo das músicas e não sei se o andamento está certo. Mas para o grupo é fácil. Definimos o quem (personagens), o onde a cena ocorre e o quê eles estão fazendo. A saio do palco para que eles improvisem. Um segundo antes de começara, como quem se lembra de um detalhe sem importância, digo que eles não podem falar, só cantar. Qualquer fala tem que ter uma melodia inventada na hora. O resultado é bem divertido. Fizeram cenas do cotidiano de um colégio. Um fato chama a atenção: os temas musicais se alternam entre religiosos e operísticos. No final me ocorre que um tema divertido seria uma aula da educação sexual sob um tema musical religioso. Eles improvisam e o resultado é muito engraçado. Não anoto alguma coisa e peço para o Flávio pensar em musicar algo na cena. Durante os comentários, rimos bastante e, num clima informal, inventamos mais uma série de piadas.

Junho, 21.

Ensaio.

Flávio chega no ensaio com a cena da Educação Sexual escrita. Marco a cena. Muito bom.

Junho, 22.

Um elemento que alimenta o personagem.

Cada ator deve trazer um elemento da sua infância para o personagem. É um trabalho com a memória emocional. Todos nós carregamos uma espécie de souvenir emocional de pequenos objetos que, apesar de parecerem desprovidos de importância, são portadores de um manancial intenso de emoção. Néco trouxe uma funda. Márcia consegui um para de Conguinhas compradas na Voluntários. Hermes veio com uma bolinha de tênis e o Flávio veio com um carrinho de lomba. Vibração geral. No Auditório Tasso Correa tem um corredor centrar com um pequeno declive que acompanha a inclinação da platéia. Um carrinho de rolimã desceu e subiu centena de vezes o corredor, enquanto a bolinha e a funda passavam de mão em mão no palco. Não houve ensaio. Foi uma vivência.

Este tipo de ensaio fez com que cada um de nós se superasse e fosse melhor do que nós éramos. Cada pequeno detalhe da peça acabou sendo investido de uma história. O carrinho de rolimã, a funda, a conguinha e muitos outros detalhes formaram um universo paralelo, pois cada elemento, por mais simples a banal que fosse, tinha um mundo submerso por trás. Este universo paralelo que atravessa a obra é que determina o mais além da criação. Há algo que nos transpassa e nos expande. No caso do Bailei a criatura fez de nós melhores criadores.

sábado, 5 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (14)


Aqui a crítica do Claudio Heemann publicada no dia 6 de abril de 1983, antes da temporada na Assembléia Legislativa. Claudio, memorável e saudoso crítico - como era bom quando se tinha um - assistira a peça no Teatrinho do DAD no final de 1983 e a pedido só liberou a publicação porque teríamos uma nova temporada.

Abril, 22.

  1. Ensaio com Lúcia.

Trabalhei com a Lúcia que entraria no lugar da Sônia Coppini. Minha idéia era de usar a Claudia Accurso na peça que já estava ensaiando o “Bailei na Curva”. Mas a Lúcia Serpa sabia todo o texto, pois havia operado o som durante as temporadas anteriores e optamos por ela em comum acordo. Mais tarde a Lúcia entraria no “Bailei na Curva”, primeiro como produtora executiva e depois como atriz.

Sônia Copinni no Não Pensa. Por causa dela foi agregado uma frase do Raul Seixas no texto:

- Sonho que se sonha junto é realidade.

- Isso é sonho.

- Por isso o nome dela é Sônia.

Tentei estudar Patologia V, mas foi impossível. Quase tentei o suicídio. Ainda bem que o ensaio chegou. Fui até o Instituto de Arte. Sabia que precisava desenvolver os personagens para coloca-los na situação dramática. Organizei um plano para o ensaio: aquecimento corporal, jogos de integração. Criar um animal. Na imitação extrair características essenciais do bicho. Segunda fase: aproveitar a imitação e as características extraídas do animal e transformar em traços humanos de modo a moldar o corpo e os modos de pensar aproveitando a alma do animal.

Anotado depois do ensaio: Regina fez um papagaio muito chato. Talvez dê para aproveitar se conseguirmos construir uma menina muito pentelha, mimada, com este material.

O Flávio fez uma garça maravilhosa. Muito engraçado. Depois ele falou que já tinha feito este mesmo exercício com a Maria Helena Lopes para os Reis Vagabundos. Não vejo como aproveitar a garça do Flávio. Talvez em algum pai. Mas já se via o talento cômico do Flávio pedindo passagem com toda a sua força criativa.

Irônico é que a garça que era boa não entrou na peça e o papagaio que era ruim gerou a chatice da Ruth.

Abril, 23, sábado.

  1. Estudei Neurocirurgia.
  2. Não houve ensaio.

Abril, 24, domingo.

  1. Estudar.
  2. Ensaio com Lúcia.

Estudei Neuro e Pato de manhã e ensaiamos com todo o elenco à tarde. Lúcia entrou super bem na peça. Já sabia todo o texto e tem um talento impressionante. Uma força cênica rara.

Abril, 25.

  1. Prova de Neuro e Pato.
  2. Ensaio no IA.

Ensaio a noite numa sala muito pequena do Instituo de Artes. Como não havia muito espaço para realizarmos exercícios físicos, propus que falássemos sobre nossas experiências. Uma espécie de brainstorm emocional. A idéia era que o teatro estava afastado demais da vida das pessoas e com o “Não Pensa Muito” e o sucesso de School’Out, percebera que as pessoas queriam, mais do que tudo, ver suas vidas no palco. Por isso, sugeri os relatos com uma forma de pesquisar no ator emoções e sentimentos que facilitassem o processo de identificação com o público. O elenco começou a falar. Quando a boca se abre sempre diz mais do sujeito do que supõe nossa vã racionalidade. Um dos atores começou falando de sua primeira sexual, com meninos. A intimidade incomoda. Fiquei sem saber o que dizer. Não era por aí que eu tinha planejado. De repente, outro ator, começou a falar da sua primeira vez uma mulher. Uma mulher mais velha onde a cena tinha detalhes romanescos altamente sedutores, mas mais pareciam uns textos do José de Alencar. Sabia que ele não tinha a mínima atração por mulheres. Interrompi os relatos e terminei o ensaio sem fazer as improvisações. Não era por aí que iria seguir o processo. Na verdade a vida da gente, apesar de ser a fonte da criação, é muito menor do que qualquer coisa que o sujeito cria. E a criação, por sua vez, é que há de melhor em nos mesmos.

Abril, 28.

  1. Ensaio geral do “Não Pensa” na Assembléia.

Ensaio com tudo. Tivemos que conseguir seis banquinhos, duas mesas e um cubo. Figurino da Sônia para a Lúcia. Precisávamos de uma rotunda preta. Compramos pano e a Regina e a mãe dela costuraram. Um trabalho absurdamente pesado, transformar tecido preto, cortado em tiras, numa rotunda. Para quem não sabe rotunda é um tipo de cortina que se usa no fundo do palco. Tinha 8 metros por 4. Uma coisa quase absurda de costurar. Aquela rotunda serviu durante anos para montarmos o palco em cada cidade do interior durante as viagens do Bailei. Com ela, mais as pernas pretas – panos colocados nas laterais – podíamos montar um palco em qualquer espaço desde cinema, passando por auditório e até mesmo em ginásios. Um trabalhão da Regina e da mãe dela, mas valeu a pena.

Abril, 29.

  1. Estréia do “Não Pensa Muito Que Dói” na Assembléia.
  2. Estudei Traumato-ortopedia.

Maio 2, 3, 4.

  1. Estudei para a prova de Anestesia.

Um único comentário: haja saco!

Maio, 6, sexta-feira.

  1. “Não Pensa Muito” na Assembléia, segunda semana.
  2. Tive que aprender a técnica de traqueostomia e comprar luvas.

A peça na Assembléia não teve a mesma repercussão que dentro da Universidade. Um público atento e fiel mas que estranhava a realidade do meio teatral. Percebi que havia algo faltante no processo identificatório e por isso o impacto da peça era menor do que o esperado. Faltava as experiências em comum que possibilitavam uma integração entre público e espetáculo. O universo restrito colocava o texto no mesmo grau de distanciamento de outros espetáculos.

Lição número um: para o próximo trabalho teria que achar pontos de contato mais efetivos.

Maio 8, domingo.

  1. Encerramento da temporada.