terça-feira, 16 de setembro de 2008

1983

Setembro, 9.

  1. Comercial em Cruz Alta.

Marília Rossi e eu viajamos durante boa parte da noite. Chegamos exaustos e fomos direto para o estúdio. O texto era péssimo. Eu tinha que fazer um tipo “Zé Bonitinho” só que não combinava a idéia deste personagem com as falas. Não havia maquiador e eu não levei nada. A Marília ainda levou seu kit de maquiagem. Eles não tinham equipamento de luz adequado, nem ilha de edição o que obrigava o comercial a ser gravado como se fosse ao vivo. Tomada única. Começo ao fim, sem erro. Todos sabem que erros sempre acontecem durante gravações e são editados. Não tínhamos este recurso. Isso nos custou quase dez horas de gravação, pois quando não era eu quem errava o texto, a Marília esquecia uma fala e quando nós dois acertávamos, a luz ou a câmera falhavam. Enfim, valeria a pena se pagassem corretamente e era o que eu ansiava. Eles finalmente aprovaram o VT e voltamos para Porto Alegre ainda naquele inicio de noite. Na hora de receber o dinheiro, veio uma proposta indecente. O VT não foi aprovado pelo cliente e eles pagariam metade à vista ou teríamos que gravar de novo. Aceitei o dinheiro mesmo sabendo que o comercial fora aprovado e que estava veiculando no interior. O início da participação de artistas gaúchos na publicidade foi marcado por vários eventos deste tipo. Demoraram anos para que um certo profissionalismo acontecesse.
Durante toda a viagem e toda a gravação Marília e eu não falamos nenhuma vez sobre a sua saída do Bailei na Curva.

Setembro, 12.




  1. Ensaio no Teatro do IPE. (Resolver a crise da Regina)
  2. Falar com a Lúcia para ir às Lojas Brasileiras conseguir tecidos.
  3. Reunião com o Geraldo (manhã): óculos / 6 camisetas com a letra A / capacete.
  4. Reunião com o Régis (tarde); patrocínio.

Regina não está bem. Como diretor esgotara minhas ferramentas. Busquei em minha mente experiências anteriores onde me defrontava com problemas semelhantes. Lembrei de uma situação com a Marília durante a temporada do “Não Pensa Muito”. Ela estava num momento muito difícil da sua vida e estava muito a fim de arrumar uma briga comigo. Precisava de um pretexto para sair da peça e eu já percebera seu estado limite. Chegou no teatro mancando, com dor no pé. Colocou uma atadura e fez todas as cenas mancando. Ostensivamente. E em todos os personagens. O elenco se revoltou. Queria que eu brigasse com a Marília, desse um esporo, mandasse ela embora. Eu estava imobilizado. Não podia falar pois era o que era queria que eu fizesse. Sai do teatro no meio da apresentação, fui até uma farmácia e comprei Gelol. Entrei no camarim e disse vou te dizer uma coisa como diretor:
- Passa Gelol e não manca mais em cena! – Dessa forma aliviava a dor e a tensão.
Com a Regina estava no mesmo impasse. Ela reagia frente às exigências do trabalho com muito mau humor, puxava o clima pra baixo. Liguei para uma colega da medicina, Dra. Lizete Pessin que estava atendendo no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Marquei hora para a Regina. Às vezes um diretor tem que realizar manobras não convencionais para dirigir uma peça de teatro.
Regina melhorou bastante, mas ainda argumentava e a cena da D. Elvira com a Ana estava com muitos problemas. Insistia em fazer do jeito dela. Para mim a personagem precisa ter um pouco mais de dignidade. No teatro, a que a gente quer mostrar, tem que esconder. O dessa forma, o público tem a sensação de arrancar do ator uma emoção transcendente. Regina exagerava criando um clima piegas. Mandei todo mundo sair da sala. Ficamos eu, ela e a Claudia. Regina seguia falando que não sentia a personagem do modo que eu lhe falava, que sua D. Elvira era outra. Claudia, se irritou:
- Mas que personagem tu estas falando. Nem sabe o texto de cor. Cada dia tu faz de um jeito. Faz o que o Júlio está falando, porra! Quem tu pensa que é, a Fernanda Montenegro?
Regina respirou fundo. Os argumentos que eram tão eficientes contra a direção se desmontaram na relação colateral. O ponto de vista de outra atriz devolveu a lucidez e ela cedeu. A Dona Elvira da Regina ficou maravilhosa.
Depois do ensaio procuro Claudia. Ela se desculpa dizendo que não deveria ter falado daquele jeito. Eu lhe agradeço. Ela disse exatamente o que eu deveria ter dito, mas estava com dificuldade de me impor.



O bailarino e ator Alexander Goudnov, vilão do Duro de Matar 1, cujo cachê foi desviado para o Bailei na Curva por habilidade do Geraldo Lopes e sensibilidade do Paulo Amorim.

Reunião com o Régis Conte. Como irmão mais velho e bom negociante e administrador, sempre esteve ligado a projetos empresariais junto com meu pai. Tiveram vários negócios em comum. Naquele momento Régis era o Diretor da Conte S/A Máquinas Agrícolas que tinha uma representação da Valmet. Tratores não combinavam nada com cultura. Pelo menos nesta época, mesmo assim foi falar com ele. Explanei o projeto da peça e ele na hora fechou o patrocínio. Ele ainda quis me ajudar mais. Imaginou que Geraldo Lopes teria a porcentagem como produtor e me sugeriu que eu ficasse com o dinheiro da porcentagem e contratasse a Opus pagando um preço fixo. A intenção dele era ajudar o irmão menor que se encontra em múltiplas enrascadas financeiras. Não aceitei. Pensava que se cada um se sentisse integrado no trabalho teríamos um resultado mais harmônico. O grupo estava acima de tudo e o Geraldo era do grupo. Preferi dispor de todo o patrocínio para o espetáculo. Com certeza o investimento desta maneira traria um retorno maior a para mais gente. Meu irmão Régis Conte foi então o primeiro patrocinador do Bailei na Curva. Como o dinheiro fizemos a programação gráfica, a divulgação e uma pequena mídia de jornal e TV. O Geraldo criou uma frase para o programa. Valmet, “a mente humana é uma terra fértil, a arte, seu melhor fruto”. Ele me mostrou entusiasmado. O Geraldo conseguiu ainda outro patrocínio. A Opus estava bancando a vinda o bailarino Alexander Goudnov que faria uma rápida temporada em Porto Alegre. Era uma atração internacional, um sucesso mais do que garantido. O evento tinha apoio financeiro e oficial. Geraldo convenceu o Subsecretário de Cultura da SEC/RS, Joaquim Paulo de Almeida Amorim, a dividir o dinheiro do Goudnov com o Bailei na Curva. Sempre que eu vejo as reprises do Duro de Matar eu agradeço ao bandido do filme, que sem saber, cedeu metade do seu patrocínio para uma peça gaúcha. Como o orçamento foi feita uma tiragem de mil e quinhentos programas. Eu achei muito. Se tivéssemos umas mil pessoas em toda a temporada, para nós, já seria muito. Felizmente eu estava errado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

1983


Setembro, 6.


  • Telefonar para o Janjão
  • Marquinho: Geraldo.
  • Ensaio no Teatro do IPE

O Janjão Freire foi corredor de automóveis, corredor de maratona e diretor da Taurus. Era também cunhado do meu irmão. Por isso, na hora do aperto, liguei para ele para ver a possibilidade de patrocínio. Ele tentara me colocar num comercial da Taurus sobre um novo tipo de chave de fenda que possuía um imã facilitando o contato com o parafuso. Efeito carimbador maluco. Não deu certo, mas nesta tentativa prévia, ficara sabendo que o Taurus estava querendo mudar a imagem de uma fábrica demasiadamente marcada pela confecção de armas. Falei com o Geraldo e pensamos em propor algo para a Taurus no sentido de oferecer um marketing cultural e aliviar a pressão negativa sobre a marca. Marcamos uma reunião no Bar do IAB, um tanto informal, e avisei o Flávio Bicca que estaríamos lá. Ele insistiu em participar. Geraldo Lopes e Janjão Freire frente a frente na mesa e eu e Flávio nas adjacências. O negócio era entre empresários e nós éramos neófitos, cabia observar mais do que agir. Geraldo falou um pouco sobre o significado da associação entre a marca de uma empresa e o produto cultural. Janjão falou do seu interesse nesta associação. Eu já imaginei o dinheiro entrando para fazer uma bela estréia, com cartaz, programação gráfica e divulgação. Foi aí que o Flávio falou:
- E qual é a posição da empresa quanto à venda de armas em Moçambique?
Silêncio no tribunal. Geraldo virou um pimentão, literalmente, não é figura de linguagem. Quem conhece o Geraldo sabe que ele quando se irrita ou se constrange ou ri fica totalmente vermelho. Pois naquela hora ficou vermelho de raiva. Eu tive vontade de comprar uma arma da Taurus e dar um tiro no Bicca. Janjão foi o mais cordial. Olhou para o Bicca, falou algumas coisas banais, pediu a conta e saiu. Fim do patrocínio. Depois comentando com o grupo, a Claudia Acursso, Lúcia Serpa, o Hermes Mancilha e o Cláudio Cruz também se manifestaram contra a idéia de uma peça que fazia uma crítica a ditadura do regime militar, ao estado de exceção e a tortura, associar-se a uma fábrica de armas. Eles tinham razão. Ainda abem que o Flávio fez aquela besteira, senão eu teria feito uma besteira maior. Teria aceitado para o Bailei na Curva um patrocínio de uma marca de arma de fogo.
Seria um tiro pela culatra.

A origem do bonequinho do Bailei

Na tarde me encontrei com o Marquinho na Getúlio Vargas. Ele trabalhava numa agência de publicidade e fazia alguns free para a Opus. Como não podia me receber na agência, nos falamos na calçada. Ele já tinha um brife, mas tinha dúvidas. Conversamos, falei que minha idéia era que a peça começasse como se fosse uma peça infantil, que tivesse uma ingenuidade inicial para depois evoluir para um drama. Era essencial uma leveza que relaxasse o público e ao mesmo tempo prenunciasse o trágico. Marquinho era uma pessoa maravilhosa, um metro e pouco, muito astral, falava alongando as vogais e melando as palavras. Quase bicho grilo e desse jeito mesmo ele falou:
- Mas afinaaaaal, o que tu queeeer?
Eu estava cansado, uma porção de decisões. Levantei os braços, encolhi os ombros e devo ter feito uma cara de desiludido.

Ele falou:
- Quem sabe um bonequinho, assim, com esta expressão? – e encolheu os olhos, comprimiu os olhos e abriu os braços me imitando.
Olhei para ele, ali no meio da Getúlio, final da tarde, e vi no corpo deleo aquilo que ele viu no meu: o bonequinho do Bailei.

Ensaiamos a noite até tarde, pois no dia seguinte era feriado. Durante o ensaio já tinhamos o bonequinho do Bailei, pelo menos na cabeça do Marquinho.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

1983







Agosto, 26.


  • Sobre o conceito de transferência.

Na aula de psiquiatria na Divisão Melanie Klein do Hospital São Pedro, a discussão foi sobre transferência. Como se sabe transferência é um fenômeno descoberto por Freud no qual o paciente projeta na figura do analista suas relações mais primitivas. Este fonômeno ganhou importância pois é justamente por causa dele que o analista tem ferramentas para tratamento de doenças psíquicas, uma vez que ao atualizar sobre o analista vínculos passados e primitivos, cria-se as condições para alterar padrões antigos e possibilitar novas repostas a antigos problemas. Ou seja, cria-se as condições de aprender com a experiência.
Na segunda parte da aula foi de supervisões. A paciente do Fábio, um colega de turma, parou o tratamento. Chegamos a conclusão que foi um abandono. Fábio sustentou até o fim que foi uma alta e bem sucedida. Questões de ponto de vista. Cura em duas sessões é coisa para traumatologista. Depois, dele apresentei o caso da minha moça de olhos tristes. Relatei que ela chegara no atendimento muito assustada. Disse que achava que estava ficando louca. Perguntei porque e ela respondeu que estava me vendo em todos os lugares. Eu já imaginara que era fruto da transferência quando ela falou:
- Essa semana estava vendo TV e vi o teu rosto na cara de um monstro de uma propaganda.
Dra. Lucrecia, muito sagaz, perguntou se eu fizera mesmo a propaganda. Os colegas riram da pergunta. Só pararam quando eu disse que sim. Era eu mesmo o monstro que assombrava minha paciente. Minha sorte foi que, durante a sessão, havia dito para a paciente que de fato, fora eu que interpretara o Carimbador Maluco e que não era um montro de sua fantasia. Ela sentiu-se aliviada. Aprendi que a verdade pode ser dura, pode ser engraçada, pode ser trágica, mas é sempre verdade e por isso, mitiga o nosso sofrimento pois remete para aquilo que não pode deixar de ser. A verdade alivia. Quando dita com amor.

Graças ao mestre Freud que invetou o homem como a gente conhece hoje.


Agosto 30.


  • Reunião com Geraldo da Opus para quantificar a produção.

Eu estava muito tenso. Quantificar uma produção era a pauta da reunião. Para mim a questão era um enigma da matemática moderna: como quantificar o nada. Fazendo teatro com se fazia até então era a inveção do zero. Não havia produção, não havia dinheiro, não havia projeto mínimo de organização. Com estas premissas sentei na frente do Geraldo para aprender. Ele estabeleceu um plano mínimo para a realização de uma peça de teatro.


Anotação ao pé da página: Dinheiro da Distribuidora; Vila: Divisão Melanie Klein Geraldo Lopes – Régis C.



  • Reunião com Leisa Serpa no Teatro do IPE.

Reunião no Teatro do IPE, com Leisa Serpa, mãe da Lúcia. Ela disse que queria ativar o teatro até então usado como auditório. E logo confirmamos as datas. Nem precisei argumentar nada. E ainda por cima, conseguimos o teatro para ensaiar. Uma preciosidade que gerou frutos, pois ensaiar no ambiente de apresentação é uma raridade que só acontece quando um produção aluga ou é proprietário de uma sala de espetáculos. Descobrimos que o palco é material de trabalho do ator, como uma cama para o amante, quando mais usa, mais lhe pertence.

Foi desta forma que colocamos o Teatro do IPE no mapa da cidade.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

1983

Agosto, 23.





  • Reunião no Museu do Trabalho.


  • Carimbador maluco no Do Sul, noite.

    Reunião no Museu do Trabalho.


Apresentei o projeto do Bailei novamente, agora para a nova diretoria que tomou posse. Eles também recusaram. Ficaram me olhando como se eu estivesse pirado. Aliança Francesa nem nos recebeu e o Goethe tinha toda a pauta ocupada.
Depois que a peça estourou o diretor do Museu do Trabalho veio me propor temporada. Tinha que acreditar antes, senão não vale.
Falei com a Lúcia ela pensou no Teatro do IPE. Não tem tradição, mas se não tiver outro... Sua mãe, Leisa Serpa ocupava um cargo no IPÊ e tinha idéia de utilizar o teatro para mais coisas do que seminários e conferências. Lúcia e eu falamos com ela. Na pior das hipóteses tínhamos teatro.
Acabamos optando pelo IPÊ depois de saber que não havíamos ganhado temporada no Teatro Renascença. Perdemos o edital para o Mario Masseti, um diretor paulista que estava com muitos trabalhos interessantes em Porto Alegre. Um dia me ligaram da administração do Centro Municipal de Cultura para que eu fosse buscar o projeto. Cheguei lá e o projeto não havia passado pelo protocolo geral e não havia sequer entrado no pleito de ocupação. Um funcionário da Opus, desabituado com a burocracia perdeu o prazo e entregou o projeto direto no teatro. Nem entrou em julgamento. Ficamos esperando um resultado que não tinha chance de acontecer. Mas, obviamente o funcionário não avisou ninguém. O nome dele era Átila, também conhecido nas internas como Átila, o rei dos burros. Trabalha na Opus até hoje é um cara legal.

Carimbador maluco no Do Sul, noite.



Gravei um comercial para TV com direção de Flávia Moraes. Uma campanha para a rede de Supermercados Do Sul. Passamos a madrugada no Supermercado na esquina da Rua São Vicente com a Av. Protásio Alves. O personagem era inspirado na música de Raul Seixas e fez muito sucesso. Eu usava uma maquiagem espessa, grossa, uma espécie de máscara branca, um chapéu coco e um carimbo gigantesco. Eu, quer dizer, o Carimbador Maluco entrava no supermercado de madrugada e remarcava todos os preços. Carimbava tudo o que via pela frente e culmina a perfomance com um carimbo na câmera. No final do VT eu atravessava um grande corredor vazio e no fundo dava dois pulos e no ar batia as solas da botina. Ficou com marca registrada do Carimbador Maluco. O comercial entrou no ar com uma mídia fantástica. Concentrando tudo na segunda feira para a promoção na terça, a veiculação foi de cento e vinte inserções somando todos os canais. Isso significou que a mídia no dia do lançamento da campanha do Carimbador Maluco, somando todos as veiculações em todos os canais, atingia o total de duas horas no ar. O tempo de um filme de longa-metragem. Isso teria conseqüências.

Agosto, 24.





  • Elenco da peça fechado: Cláudia, Cláudio, Flávio, Regina, Hermes, Márcia, Júlio & Lúcia.

    Com alegria escrevi que finalmente o elenco estava fechado: Cláudio, ariano, 29 anos, depois eu, Júlio, 28. Leão; Regina, 27, Sagitário; Flávio, 26, Peixes; Claudia, 24, Libra; Hermes, 23, Escorpião; Márcia, 22, Aquário; Lúcia, 18, Capricórnio. Pensava em fazer o mapa astral da peça. Faltava o dia e a hora do nascimento. Achava esse negócio de signos uma bobagem, mas... Pensamento mágico vale na reta final dos ensaios. São tantas variantes e a maiorias delas não se tem controle.
    Por isso No creo em las bruxas...