segunda-feira, 4 de maio de 2009

22 de novembro de 1983

Novembro, 22.

  1. Psiquiatria.

Encerrei o tratamento com a moça dos olhos tristes. Depois do episódio do Carimbador ela abriu o livro de sua vida para mim. Na minha inexperiência ofereci o que tinha de melhor, minha atenção e uma escuta solidária. Não tinha mais recursos do que esses. Anos depois no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, onde fiz a minha formação em psicanálise, aprendi com um professor que a primeira coisa que se pode fazer com um paciente é recebe-lo. Com o tempo se pode compreende-lo, para só então, depois algum tempo, conseguir operar. Compreender e operar dependem do aprendizado e são questões técnicas. Acolher advém de algo que cada um tem dentro de si e depende do quanto se foi acolhido. A vida se faz assim, de mãos que seguram outras mãos formando a grande rede dos afetos. A grande rede da solidariedade. Um mundo reticular feito do que há de mais frágil dentro de nós.

Novembro, 25.

  1. Vim Vadia do Nelson Coelho de Castro.

Comprei o LP do Nelson Coelho de Castro. Vim Vadia fora produzido pela Continental – RGE era o resultado de uma série de show que vinham sendo testados desde o início do ano no Bar do IAB. Nelson sempre se colocou com um teórico da produção artística gaúcha, tivera experiências com produções independentes e sustentara uma cultura da resistência fora da mídia global e do eixo das grandes produtoras. Além de músico era um teórico do processo cultural. Na contra-capa havia uma foto linda. Nelson com cabelos longos ao vento e um copo na mão. Do um lado uma mulher com pulôver listrado e no outro uma criança. O retrato feito no inverno de 83 tem como pano de fundo a rua Felipe Néri. O autor é o hoje conceituado artista plástico Eduardo Vieira da Cunha, na época na Faculdade de Artes de UFRGS. A menina de jaqueta plástica e sombrinha é Joana Carolina, então com cinco anos. Filha do Luiz Antônio Catafesto, fotógrafo e professor de Semiótica, a menina cresceu e é fotógrafa profissional. A mulher de pulôver é Liane Beltrão, Lica, namorada de Nelson na época. Arquiteta mora em Londres. Nelson Coelho de Castro que na época morava no Cristal, mora hoje no bairro Auxiliadora, a três quadras do local onde foi tirada a foto vinte anos antes. A faixa 6 era a música “Legislativo”. No final tinha uma poesia recitada por Lica , eu escutei quase três mil vezes:


Não posso me esquecer de nada que está acontecendo agora
Nesse momento, nesta cidade, neste estado, nesta cidade, neste país, neste planeta
Do que estamos fazendo e o que estamos fazendo para a narrativa da história
Eu quero ver se consigo trazer isso sempre acordado dentro de mim
Este êxtase, essa música, essa fotografia, este cinema, esse agora recém parido
Por que saber este tudo agora será saber isso tudo num outro agora
Minha única e verdadeira arma e isso me excita


O ano se encaminhava para o seu final e, como Nelson bem definiu, não era uma poesia mas uma oração, uma mensagem ao futuro, que falava de todos nós. Amém.

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