segunda-feira, 14 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (15)

Maio, 10.

Ensaio.

Flávio chega no ensaio com um gravador cassete. Diz que tem uma coisa para mostrar. No palco Hermes se aquece. Claudia está mudando de roupa. Márcia conversa com a Regina na primeira fila do Auditório Tasso Correa. Eu estou com uma imensa folha de desenho onde estão anotadas as cenas programadas numa coluna e noutra os eventos de época. Flávio aperta o play. A música começa a tocar. Há muito tempo que ando. Tudo pára. Nas ruas de um porto não muito alegre. Regina se aproxima. E que, no entanto me traz encantos. Hermes pára de se exercitar e Claudia se apóia no palco. Um por de sol me traduz em versos. Flávio observa cada um. De seguir livre, muitos caminhos, arando terra bebendo vinho. Márcia apóia os cotovelos no proscênio. De ter idéias de liberdade. Me deu uma vontade de chorar. De ver amor em todas idades. 64, 66, 68 mau tempo talvez, anos 70 não deu pra ti e nos 80 eu não vou me perder por aí. Se fosse um filme, poder-se-ia dar um super close em cada um e teríamos o retrato emocional do grupo.

O Hermes, sempre tão sardônico, quebrou o clima dizendo:

- O jingle da peça já está pronto. Agora só falta o texto.

Rimos. A ironia na hora certa nos salvou do melodramático.

Foi neste meio dia que eu levei vários livro de contos para pesquisa. Li para o grupo um texto do Júlio César Monteiro Martins. O título era muito bom: Sabe quem dançou? Falei para o pessoal que este seria um título que eu usaria se a idéia fosse minha. Hermes, de novo, certeiro e mordaz, falou:

- Então põe aí Bailei na Curva Ui Ui Ui Bem Feito.

Rimos novamente. Foi de comum acordo que se decidiu que Bailei na Curva era ótimo, mas que era melhor deixar para lá o “ui ui ui bem feito”.

Fumaça branca: habemos título!

Maio, 16 até 28 de junho.

Faculdade de Medicina.

Foi um período de provas. Patologia IV, Cirurgia Pediátrica, Cirurgia Geral e Cirurgia Plástica. Nesta tirei a minha melhor nota, 9,5. No dia da prova o Careca como era conhecido e depois Dr. João Carlos Schelletti quis me ajudar numa questão em todo o mundo tomou errou. Era uma técnica para pessoas com escaras de decúbito. Lesionados, paralisado, por permanecerem na cama muito tempo acabavam tendo escara que era de difícil tratamento. O procedimento consistia numa amputação da perna e um reaproveitamento das artérias de membro inferior e dos músculos formando um almofadão que impedia as escara. Como era um tema que eu tinha contado direto, Pedro tivera várias escara, meu interesse pelo assunto e meu espanto pela violência do tratamento, acertei a questão.

Flávio avisou o elenco que inscrevera a música para o 3º Festival Universitário de Música Popular Brasileira. Era uma tentativa de reviver o clima de festival. Ninguém aprovou nem desaprovou. Era uma decisão dele.

Alternei as noites entre o curso para o pessoal da Caixa e ensaios até o dia 29.

Junho, 18.

Festival Universitário no Salão de Atos da Reitoria.

Flávio Bicca Rocha apresentou a música Horizontes no 3º Festival Universitário de Música Popular Brasileira. Foi na última noite da eliminatória. E se classificou para a final.

Junho, 19.

Finalíssima do Festival.

Flávio tocou e cantou muito bem e a regência do maestro Arlindo Teixeira estava brilhante. Uma introdução de violinos maravilhosa. Horizontes, música tema do Bailei na Curva, ficou em primeiro como Música Mais Popular – Prêmio Secretaria de Turismo – RS e, em terceiro pelo júri formado por Celso Loureiro Chaves, César Dorfmann, Geraldo Flach, Jerônimo Jardim, Ivan Fetter, Kim Ribeiro, Nei Lisboa e Sergio Napp. Foi uma festa. Carregamos o Flávio Bicca nos braços até o palco. Ele recebeu o prêmio e deram a palavra para ele. O elenco todo gritava para que ele fizesse propaganda da peça.

- Esta música faz parte de uma peça que vai estrear no Teatro do IPE. O nome da peça é... Como é mesmo o nome da peça?

Ele simplesmente esquecera o nome da peça. Coisas de Bicca.

Comprou uma TV 14’ polegadas de prêmio.

Junho, 20.

Plano do ensaio.

Rabisco lateral: Não sei o que fazer. Levo o exercício da Cena Cantada (Viola Spolin) para ver o que acontece. Rabisco lateral: Não estou lavando fé que dê em alguma coisa.

O enunciado é bem simples. Apresentei a situação. Este tipo de exercício seria especialmente difícil para mim, pois eu perco o ritmo das músicas e não sei se o andamento está certo. Mas para o grupo é fácil. Definimos o quem (personagens), o onde a cena ocorre e o quê eles estão fazendo. A saio do palco para que eles improvisem. Um segundo antes de começara, como quem se lembra de um detalhe sem importância, digo que eles não podem falar, só cantar. Qualquer fala tem que ter uma melodia inventada na hora. O resultado é bem divertido. Fizeram cenas do cotidiano de um colégio. Um fato chama a atenção: os temas musicais se alternam entre religiosos e operísticos. No final me ocorre que um tema divertido seria uma aula da educação sexual sob um tema musical religioso. Eles improvisam e o resultado é muito engraçado. Não anoto alguma coisa e peço para o Flávio pensar em musicar algo na cena. Durante os comentários, rimos bastante e, num clima informal, inventamos mais uma série de piadas.

Junho, 21.

Ensaio.

Flávio chega no ensaio com a cena da Educação Sexual escrita. Marco a cena. Muito bom.

Junho, 22.

Um elemento que alimenta o personagem.

Cada ator deve trazer um elemento da sua infância para o personagem. É um trabalho com a memória emocional. Todos nós carregamos uma espécie de souvenir emocional de pequenos objetos que, apesar de parecerem desprovidos de importância, são portadores de um manancial intenso de emoção. Néco trouxe uma funda. Márcia consegui um para de Conguinhas compradas na Voluntários. Hermes veio com uma bolinha de tênis e o Flávio veio com um carrinho de lomba. Vibração geral. No Auditório Tasso Correa tem um corredor centrar com um pequeno declive que acompanha a inclinação da platéia. Um carrinho de rolimã desceu e subiu centena de vezes o corredor, enquanto a bolinha e a funda passavam de mão em mão no palco. Não houve ensaio. Foi uma vivência.

Este tipo de ensaio fez com que cada um de nós se superasse e fosse melhor do que nós éramos. Cada pequeno detalhe da peça acabou sendo investido de uma história. O carrinho de rolimã, a funda, a conguinha e muitos outros detalhes formaram um universo paralelo, pois cada elemento, por mais simples a banal que fosse, tinha um mundo submerso por trás. Este universo paralelo que atravessa a obra é que determina o mais além da criação. Há algo que nos transpassa e nos expande. No caso do Bailei a criatura fez de nós melhores criadores.

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