domingo, 27 de abril de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (17)


Julho, 22.
  1. Ensaiamos das 16 horas até as 19 horas.
  2. Grêmio x Penharol, Libertadores da América

Neste período de ensaios Flávio começou a ligar para a Márcia. Ligações seguidas, muitas horas de conversa, voz melosa, clima íntimo. Eu estava na sala dos fundos, escrevendo na Olivetti Lexicon 80 que surrupiara do meu pai, e fui até a sala de estar. Respirar um pouco. A salinha dos fundos era para ser o quarto da empregada, mas se tornara meu escritório. Não tinha uma boa ventilação e a luz era artificial o tempo todo. Precisava de ar e de sol. Parei na janela aberta, olhando o movimento de carros da Getúlio quando percebi que Márcia seguia no telefone. Achei estranho que eles conversem tanto tempo. Percebo que há alguma coisa se esboçando. Um clima. Controlo o ciúme. Será o ele agüentaria toda a barra, Pedro, grana, e tudo o mais. Por um momento imagino que ela vai embora com ele e sinto um alívio. Imediatamente me culpo por isso. Márcia está muito carente. O erro deve ser meu. Por outro lado, nos ensaios, os dois fazendo cenas conjuntas de casais facilita o aparecimento de um clima amoroso. Os atore se entregam as emoções de seus personagens e acabam por assumir tal emoção. Por isso, há tantos casamentos entre parceiros e parceiras de palco. Teatro é um negócio perigoso. Além disso e ao mesmo tempo, este clima latente deixa os dois muito constrangidos na cena. Tínhamos que representar uma cena que descrevesse o momento de morar sozinho, entre o final da adolescência e o início da vida adulta. Momentos de decisão. A saída da casa dos pais, os novos modelos de relacionamento, as dúvidas frente ao casamento e o rescaldo do amor livre dos anos 60, reciclado nos 80. Márcia e Flávio se atrapalhavam. Não consigo terminar a cena e eles não conseguem improvisar. Mando todo o mundo sair da sala de ensaio. Ficamos nós três. Peço que eles improvisem de novo. Pego uma máquina de datilografia da sala ao lado e começo a escrever ao mesmo tempo em que eles atuam. O taque-taque da datilografia anda um pouco atrás da cena. Um tempo certo para a reflexão e estou com eles em cena. Taque-taque das teclas. Vozes exaltadas. Eles discutem até que se faz um silêncio. O taque-taque perde o ritmo. Um na frente do outro e eu na frente da máquina. Levanto a cabeça, vejo os dois parados, olho no olho. Baixo a cabeça e escrevo: diz Paulo não dói. Falo em voz alta. Márcia repete. “Diz Paulo, não dói!”. Taque-taque. Eu te amo. – sugiro, salto no escuro, fala para ela - Eu te amo.

Ele fala “eu te amo”.

  1. Elipse do ciúmes

Atores entram nos processos de forma ingênua, brincam com a radioatividade das emoções. Todo grande ator é tomado pela personagem de tal modo que freqüentemente se confunde. No nosso processo tal confusão se prestava ainda mais, pois as personagens eram extraídas de nós mesmos e não sendo exatamente nós, poderiam ter sido ou acontecido, pois se inseria no rol de possibilidades que cada um carrega dentro de si.

Um beijo sela o desfecho da cena. Achei o final da cena e resolvi um problema conjugal sem precisar discutir a relação. Aguentei no osso com um futebolzinho para suportar.

Na mesma noite, assisti primeira partida da final da Taça Libertadores da América, Grêmio, da Azenha, enfrentando o Penharol do Uruguai, no apartamento da Getúlio Vargas. Os vizinhos da frente são uns colorados fanáticos. Eu era meu costume gritar quando o Grêmio fazia gol, pois me incomodava um pouco este tipo de invasão. O Grêmio saiu ganhando com gol de Tita de cabeça e eu, como de costume, não vibrei. No segundo tempo, gol de Fernando Morena, do Penharol e tive que escutar uma gritaria da vizinhança. O Grêmio suportou uma tremenda pressão, mas veio com um empate. Fiquei calado, daqui a sete dias, a finalíssima seria em casa, Porto Alegre.

Em algum momento, os ventos teriam que soprar a meu favor.

Julho, 23.

  1. Ensaiar uma reunião dançante.

Levei para o ensaio uma eletrola portátil que liga puxando o braço para fora. Mais minha coleção de compactos e todos os discos dos Beatles que eu tinha. Muitos amealhados sorrateiramente dos meus irmãos mais velhos e outros que apareciam lá em casa esquecidos depois de algumas reuniões dançantes. Regina, Claudia e Márcia levaram uma boa quantidade de figurinos. Ligamos a eletrola e nos vestimos. Flávio colocou a calça boca de sino de veludo bordô do irmão da Márcia e uma camisa cacharel. Márcia vestiu uma mini-saia e o Hermes falou:

- É a Betiranha! – Assim o nome da personagem do conto de Júlio César Monteiro Martins entrou na peça. Poderia ter mudado para Katiranha, Luciranha, Lecaranha. Mas seria sempre uma Betiranha. Ficou. Anos depois conheci Júlio César Monteiro Martins no rio de Janeiro. Ele assistiu a peça. Ele me deu um livro de presente e na dedicatória fala dos pequenos plágios. Um pouco de mágoa, mas também um pouco de admiração. Mútua.

E assim, passamos todos o ensaio dançando e se vestindo. Tínhamos aí o Torugo, a Betiranha e a cena de reunião dançante. Mais uma vez, não houve ensaio. Foi mais uma vivência.

Este tipo de exercício foi o grande propulsor do processo e também a grande dificuldade nos anos seguintes. Nossa virtude é nossa desgraça. Como o resultado surgiu aparentemente muito fácil, parecia que se tratava de uma conquista sacramentada. Parecia que tinha sido fácil e que o resultado só dependia de aplicar uma forma. Além do fato de ainda sermos muito verdes para alcançar o objetivo alcançado, em tudo o acontecido superava o esperado. Levamos anos absorvendo os resultados do “Bailei na Curva”. Invariavelmente todos do elenco tiveram crises criativas e ou se afastaram definitivamente ou temporariamente do teatro. Sem contar que se criou a ilusão que todos criaram a peça independente dos outros. Ganhamos na vivência, mas perdemos na reflexão.

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