sexta-feira, 14 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (9)


Abril, 4.

  1. Prova de Urologia.
  2. Ensaio no IA.
  3. Confirmar datas na Assembléia.

Ensaios no Instituto de Artes. Começamos com as improvisações. Flávio, Cláudia e Márcia improvisaram uma ótima cena de traição e ciúmes. Pensei que poderia ser um ícone para a revolução sexual, do amor livre e de todo o alegre desbunde dos anos 60 e 70. Ainda não se conhecia a face mortal da AIDS. Todos podiam transar com todos e não havia a propriedade. Porém o amor livre não deu certo, pois qualquer amor nunca é livre, e sim tirânico e possessivo. O bisturi do ciúme fazia os seus efeitos. A revolução falhou, mas a cena decolou naquele dia.

Abril, 5.

  1. Lua minguante.
  2. Aula no IML.
  3. Roteiro.

Medicina Legal: visum et refertum. Lesões produzidas por instrumento contundente: escoriações, equimoses, hematoma, bossa, luxação, fratura, ruptura visceral, ferida contusa. Muitas lesões, mas as dores não mais. No morto a ferida, no vivo a dor. Característica da ferida por instrumento cortante: tem borda afiada, age por deslizamento, produz lesão linear, com bordas nítidas e regulares, fundo também é regular. Deixa uma cauda de saída e de entrada.

Dor psíquica é marca de quem está vivo, deixa cauda, cicatriz, é cortante, age por aprofundamento.

Devaneios para suportar o circo de horrores que é o IML e o cheiro da morte.

Vinha sendo assim há algum tempo. Nas aulas mais chatas da Medicina, eu tinha que fazer manobras de sobrevivência emocional contra o tédio. Restava o devaneio e a escrita automática. Através da imaginação eu fazia a minha guerrilha particular. Construía a minha Sierra Maestra, eu guerrilheiro mudando o mundo apenas com a força da minha caneta. Meus primeiros esboços dramáticos surgiram deste confronto. Sou grato a todos aquele professores extremamente chatos que me tornaram o que eu sou hoje.

Tivemos ensaios à noite e eu levei o aparelho de som. Esboço do primeiro roteiro.

Anotação: Deveremos trabalhar com as nossas memórias emocionais. O que aconteceu? O que era verdade, o que era mentira? Meia folha dobrada, presa na agenda, onde se lia 1964: Pai da Márcia organizando grupo dos Onze em Três Passos/ Pai do Júlio fugindo para Caxias/ armas em casa/ Prefeito de Camaquã se suicida (lembrança do Hermes).

Cena 1-3:

64 = revolução versus golpe. Localizar várias cenas curtas no interior. Forqueta, Três Passos, Camaquã, Porto Alegre, Garibaldi. Colonização alemã, italiana e fatos acontecidos na Capital.

Cena 3:

Chegada de Júlio do interior.
Cena 4:

Golpe de estado.
Cena 5:

Fuga para Forqueta.
Cena 6:

Prisão do Coronel Paiva, nosso vizinho. Partidão.
Cena 7:

Organização do grupo do Onze. Guerrilha. Gravação da Rádio, Discurso do Brizola, Jango.
Cena 8:

Resistência cultural: Arena, Opinião e Oficina. Censura. O mundo em revolta. Meus irmãos falando das passeatas, da polícia. Eu estudava, jogava futebol.

Cena 9:

Ano de 1968 – pichação, protestos, manchas nos muros; apogeu de um projeto cultural versus a censura.


Cena 10:

Copa de 70 – tortura. Morte.
Cena 11:

Surf, praia, Sta Catarina, alienação total. Podes crê.
Cena 12:

1975 ??? – Minha entrada na faculdade – meio universitário, filmesalternativos, teatro, livros proibidos. As mentes se abrem.
Cena 13:

1978 = Abertura / anistia. Mentira da liberdade.
Cena 14:

Eleição 1982.

Cena 15:

O sono não acabou.

Essa é a verdade que nos ensinaram e o nome desta verdade é mentira. Verdade versus mentira / realidade versus interpretação.

Este é o roteiro mais antigo que encontrei nas minhas dispersas anotações.

Nenhum comentário: