domingo, 9 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (8)



Fevereiro, 24.

  1. Morre Tennessee.
  2. Nada.

A morte e a memória da memória.

Morreu o dramaturgo americano Tennessee Williams no Hotel Elysée em Nova Iorque. O dramaturgo americano sempre esteve entre meus favoritos. Anos antes, fiz uma improvisação na aula da Maria Helena Lopes. O Ivo Bender, uma das minhas inspirações como escritor, e era – surpreendentemente – meu colega. Ela organizou uma cena. Ivo interpretava um diretor de teatro que encenava “Um Bonde Chamado Desejo”. Eu representava um ator da peça e a Gracinha era a atriz que, na trama, era casada comigo e tivera um caso com o diretor. Enfim um triangulo amoroso que se entrecruzava com o trio Stanley Kowalsky, Blanche de Bois e Mitch, personagens de Tennessee Williams.

Dias depois, ainda na mesma semana, encontrei o Ivo Bender no meio de uma manifestação estudantil. Ele me puxou para o balcão da Lancheria Matheus. O pau quebrava com a chegada de Brigada. Ele falava com entusiasmo, analisando a simetria da situação dramática e decompôs a cena. E eu preocupado com o corre-corre e a dispersão da passeata. Levou algum tempo para entender que a clareza da análise do Ivo Bender foi minha lição de dramaturgia.


Nada.

E assim o verão de 83 passou assim, entre convulsões, despedidas, gravações, desatenção e aniversários. O mundo cada vez mais passou a depender da bondade de estranhos.


Março, 1°, terça-feira.
  1. Tomografia.

O mês começou com uma tomografia computadorizada que levei, junto com outros exames, para avaliação do Dr. Jaderson Costa que estava assumindo o caso. Ele mudou a medicação, fez uma interpretação nova do eletroencefalograma. Um padrão de ponta-onda determinava uma alteração na medicação e no diagnóstico anterior que era de Síndrome de West. Esta tinha prognóstico, como dizem os médicos, reservado. O que significava em linguagem leiga, muito grave. Já o padrão ponta-onda oferecia uma esperança, pequena, mas sempre uma esperança, o que é um alento, mesmo quando esta se revela uma pálida expectativa de uma vida sem luz. A característica da esperança é esse caráter de azarão, de zebra, é este vôo do besouro que sempre esperamos quando o forte enfrenta o fraco. Esse espectro de possibilidades adversas muito superiores e potentes do que as favoráveis, determinam o estoicismo, que nos mantém vivos.

O uso de Clonazepan com Ácido Valpróico esbateu as convulsões e deu alento. O futuro não confirmaria aquela melhora, mas foi uma vitória temporária num mar de escombros emocionais.


Março, 18.
  1. Trenaflor.

Estreou no Teatro Renascença da peça Trenaflor. Foi o segundo trabalho do grupo Vende-se Sonhos e por isso, cheio de expectativas. Já haviam emplacado um sucesso com School´s Out e o momento era de sedimentar o teatro no movimento cultural. O grupo faria ainda um terceiro trabalho discutindo a produção de cinema no Sul: “Das Duas Uma”. Enquanto School´s Out colocava em movimento as escolhas profissionais e o período preparatório para a Universidade, Trenaflor era uma passárgadas porto-alegrense que tratava de confrontar o sonho neo-hippie de uma vida em comunidade versus a agruras da vida adulta . O teatro lotado, não consegui ingresso. Falei com o Jorjão, técnico do teatro Renascença, que abriu a porta do corredor da área administrativa. Entrei na sala de apresentação pela porta do palco. Sentado no chão assisti a uma apresentação emocionante. Marcos Breda, Cleyde Fayad, Angel Palomero e todo o elenco estavam muitos bem. Breda entraria no Bailei em 85 fez um poeta pornográfico que arrancava aplausos do público. Foi muito emocionante. Quando a peça terminou não fui no camarim falar com o pessoal. Cleyde e todo o elenco acharam que eu não tinha o gostado. Na verdade, não fora no camarim por que tinha gostado demais. Cheguei em casa e escrevi um poema para o grupo.

Eu queria ter feito a peça.



Março, 23, quarta.

  1. Açorianos.

Dia de glória. Recebi o prêmio Troféu Açorianos de Melhor Diretor e “Não Pensa Muito Que Dói” foi eleito o melhor espetáculo de 82. Haidée Porto foi apresentadora do prêmio e, muito feliz, fazia sinais para mim tentando me avisar da premiação, mas eu não entendia. A razão da sua felicidade é que, além da amizade que nos unia, o “Não Pensa” já estava programado para ser o primeiro espetáculo a se apresentar no projeto criado por ela, que faria história lançando muitos dos novos artistas do emergente teatro gaúcho. O nome do projeto era Unicena.

Superamos o magnífico espetáculo, “Reis Vagabundos”, da Maria Helena Lopes, este sim, na minha opinião, o melhor de 82. Mas pouco importava a justiça, tinha 26 anos, uma mulher, um apartamento, uma Brasília usada e um filho com uma lesão cerebral. Nada mais justo do que eu receber um prêmio injusto.


Março, 30, quarta-feira.

  1. Imposto de renda.
  2. Telefonemas.
  3. 1º de abril.

Imposto de renda.

Entreguei o Imposto de Renda. Não atingira a renda mínima que determinasse a obrigatoriedade da declaração, mas o fizera para recuperar uma pequena restituição originada de uma série de comerciais de TV cujos cachês tiveram retenção na fonte.


Telefonemas.

Telefonei para o Ivo Bender e falei com o Sérgio Silva. Não sei porque nem para quê, mas com certeza foi importante de outro modo não anotaria na agenda. Até hoje são duas pessoas que eu admiro muito. Ligaria para eles agora, mesmo que não tivesse nada para falar com eles.

1º de abril.

Além disso, este dia teve uma importância extra. Foi no dia 30 de março que começaram oficialmente os ensaios de uma peça que naquele momento tinha o título provisório de “1° de Abril”. O início dos ensaios foi à véspera do aniversário do golpe, mas eu não percebera naquele momento que nós vivíamos mergulhados numa linguagem que nos anteciparia, inventado-nos.

A idéia de 1° de Abril era um pensamento sem dono que pairava pela cidade. Uma nuvem de possibilidades rondando as mentes mais acuradas. A Marília, algum tempo depois de sair da peça me contou que outro diretor de teatro da cidade lhe convidou para fazer uma peça que acontecia em Porto Alegre no dia do golpe militar e teria o dia dos bobos como título. Marília respondeu:

- Essa peça existe, o Júlio já está ensaiando.

No dia seguinte, véspera do feriadão da Páscoa estudei Urologia e levei uma fita para o Gilberto Perin na TV Gaúcha. Era uma fita para copiar o clipe da música do Flávio Bicca Rocha, tema do “Não Pensa”. Em 2005, recebi a cópia daquele clipe. Uma obra de arqueologia, gravada nas dependências do DAD, antes das reformas, e guardava toda aquela arquitetura decadente, caótica e fascinante da escola de teatro.

Um comentário:

Betha Medeiros disse...

Julio, achei sensacional tua idéia de escrever, ou transcrever, o diário da montagem do Bailei Na Curva.

Eu estou fazendo minha dissertação de Mestrado sobre Os Reis Vagabundos e eu cito teu depoimento sobre o Prêmio Açorianos.

Muito bom!
Parabéns e obrigada!

Betha Medeiros (bethamedeiros@uol.com.br)