- Estudar com o Marcelo Goldani.
- Reunião com Flávio Bicca. Ele me convida para fazer uma música.
No meio de um monte de gente careta e que só se preocupava em se preparar para a prova de Residência Médica encontrei dentro da Faculdade de Medicina o Marcelo. Um cara especial. Visão de mundo ousado, cheio de coragem e de idéias originais.
Cazuza, vamos pedir piedade para essa gente careta e covarde.
Flávio Bicca chegou no meu apartamento da Getúlio Vargas esquina com Rodolfo Gomes depois do jantar. O violão debaixo do braço, olhos vibrantes. Falava que tinha tido uma visão da peça e queira traduzir isso numa música. Acordes iniciais. Falei que já conhecia aquele som. Ele disse que era inspirado no Gilberto Gil e no Bob Marley, só que noutro ritmo, noutra harmonia. Women No Cry. Ele cantarolou algumas coisas e no meio apareceu:
- 64, 65, 66...
- Isso é bom. Vai por aí – eu falei.
Ele insistiu:
- Júlio, vamos fazer esta música juntos.
- Não tenho idéia – respondi. – Mas vai por aí, esta idéia de uma seqüência de anos como refrão pode ser muito legal.
Algum tempo depois ele iria aparecer com a música Horizontes.
Há muito tempo que ando
Nas ruas de um porto não muito alegre
E que no entanto, me traz encantos
E um pôr-de-sol me traduz em versos
De seguir livre, muitos caminhos
Arando terras, provando vinhos
De ter idéias de liberdade
De ver amor em todas idades
Nasci chorando, Moinhos de Vento
Subir no bonde, descer correndo
A boa funda de goiabeira
Jogar bolita, pular fogueira
Sessenta e quatro, sessenta e seis
Sessenta e oito, um mau tempo talvez
Anos setenta, não deu pra ti
E nos oitenta eu não vou me perder por aí
Não vou me perder por aí
Não vou me perder por aí
Não vou me perder por aí
Abril, 21.
- Feriado de Tiradentes.
- Aniversário do meu pai.
- Ensaio no CPERGS
Ele sempre se vangloriou que o ferido de Tiradentes era um pretexto para o seu nascimento. Almoço em família, muito riso, vinho e, invariavelmente, discussão política.
Depois da massa, vinho e brigas, nada melhor do que uma sala de ensaios.
Elenco da peça: Cláudia, Néco, Flávio, Regina, Hermes, Márcia, Júlio.
Roteiro provisório, mas já evoluído, para o ensaio a tarde no CPRGS.
Cena 1: família do militar.
Cena 2: Família do comunista.
Cena 3: Parada no ônibus.
Cena 4: Família do médico.
Cena 5: Crianças a noite.
Conseguimos CPRGS para ensaiar. Um salão enorme. Improvisamos a cena da casa do comunista. Mãe queimando livros. Lembrança trazida pela Cláudia. A mãe dela queimando livros nos fundos da casa. O personagem do Flávio se chamava Chiquinho e só depois o transformei em Paulo. Um ensaio meio estranho, faltando muita gente. Aproveitei um dos meus exercícios preferidos da Viola no qual o ator 1 entra em cena e através da relação com o ator 2, tem que descobrir quem ele é. A identidade está no vínculo. O ator 1 tem que integrar a informação nova trazida pelo ator 2 como se ela sempre existisse. Foi neste dia que apareceu o nome de Pedro para o personagem do Hermes. A Márcia estava improvisando (ator 1) e Hermes (ator 2) se apresentou para ajuda-lo. Revelou-se a identidade: eram irmãos. Falou seu nome para ela: Pedro. Márcia sorriu carinhosa. E foram o dois a brincar com se tivessem passado toda a vida juntos.
Um fato, uma espécie de coincidência, embora no meu íntimo, por formação e intuição não acredite nelas, chamou a atenção de todo o grupo. Já alinhavara várias cenas de famílias em exercício que ainda não mostrara para o grupo. Foi um tipo de improvisação textual que eu fazia antes e depois dos ensaios. Imaginava que através delas se conseguiria desenhar um quadro do movimento das idéias. Porém, quando começamos a conversar sobre nossas famílias e sobre as experiências das quais poderíamos extrair dramaturgia a coincidência se manifestou. Dentro do grupo tínhamos uma amostra muito fiel das forças vivas que geraram e sustentaram o golpe militar.
O Flávio era filho de militar. Em 64 seu pai vivia de prontidão no quartel e naqueles dias de março passou semanas sem aparecer em casa. Um dia veio para almoçar. Estava com uniforme de instrução e bastante nervoso. Não deu muita atenção para os filhos e voltou para o quartel. Serviu de base para a primeira cena da peça.
Claudia, filha do economista, Cláudio Acursso, trouxe sua experiência no exílio, a viagem sem sentido e a perda dos coleguinhas de aula. Certo dia, chegando do colégio flagrou sua mãe queimando livros. Ele era professor da Universidade.
Hermes vinha das classes populares. Morava em Canoas, sua família vivia num meio cultural pobre e ele muito cedo se viu trabalhando em eventos dentro dos Sindicatos. Olhando o meio em que se criou, ninguém apostaria que se fosse se tornar um artista. Mas ele foi. Hoje na Casa de Cultura Mario Quintana tem uma sala em homenagem a ele.
Regina era oriunda de uma classe média baixa. No palco era uma atriz maravilhosa, sustentava uma tensão dramática como poucas que eu conheci. A vida familiar, por outro lado, era marcada pela incompreensão dos pais. No entanto, é da mãe da Regina um dos consolos mais singelos que já vi. Foi durante uma das brigas dentro do grupo e na iminência de uma dissolução. Regina estava chorando no seu quarto quando a mãe entrou. Perguntou o que estava acontecendo. Regina falou das brigas e da possível separação. A mãe dela falou com uma bondosa ingenuidade:
- Minha filha, os Beatles que são os Beatles se separaram...
Regina riu. Mas riu muito. Talvez uma das ouças vezes que sua mãe a fez gargalhar.
Márcia era filha de médico, político e comunista. O ambiente na casa dela ela sempre efervescente e estimulante. Quando estava começando meu namoro com a Márcia, ela interrompeu um clima animado e falou em tom grave:
- Júlio, preciso te falar uma coisa. Meu pai...
- O que tem ele?
Ela olhou para os lados buscando algum microfone escondido, clima de suspense. Fiquei tenso pensando no que seria.
- Ele é do Partidão – ela falou.
- Ah, eu já sabia. Eu até já votei nele.
Meu pai representava o pensamento conservador da direita. Empresário apoiava os movimentos militares para manter a ordem. Sempre muito apocalíptico previa um desastre a cada notícia. Quando do golpe militar, brincamos na Dario Pederneiras e foi a primeira e única vez que as turmas que estudavam a tarde e as da manhã puderam brincar num dia de semana. A tarde, no entanto a incerteza da situação política se agravou. Houve uma debandada. Cada um para sua casa e o clima mudo radicalmente. Entramos no Simca Chambord e fugimos para Forqueta. Eu entrei no carro a contragosto. Resmungando e reclamando, pois tinha sido uma das manhãs mais divertidas da Dario Pederneiras de todos os tempos. Minha irmã chegou no meu lado e disse:
- Júlio, nem um pio que teu pai está muito nervoso. Ele está fugindo da morte.
Palavras que aparecem na cena da casa do Caco. Anos depois, meu sobrinho Tiago Conte, filho da mesma Salete que falou está frase, interpretava o personagem.
Aqui minha irmã Salete e seu filho, meu sobrinho, Tiago que tinha cinco anos e assistiu o Bailei de forma clandestina em 84 e fez o Caco nos anos de 2001 em diante e participou da milésima apresentação. Veja a placa ao fundo,
2 comentários:
Olá Júlio!
Legal ter me achado nese mundo de Blogs...
Já assisti algumas vezes ao Bailei. Sempre me emociono. Escrevi uma pequena declaração à peça no meu blog: http://coisasurbanas.blogspot.com/2005/10/horizontes.html
Assisti ao Rei da Escória em uma pré-estréia na Casa de Cultura.
Gosto muito dos teus textos.
Um grande abraço!
Obrigado, Mauro, são pessoas com vc que mantém acessa a chama da memória e faz com que a gente insista. E insistir ainda é a melhor maneira de teimar com a vida.
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