sexta-feira, 21 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (11)



Abril, 12, terça-feira.

  1. Projeto Bolsa Arte.
  2. Buscar dinheiro.
  3. Pagar contas.
  4. Cortar o cabelo.

Bolsa Arte foi um projeto de pesquisa financiado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escrevi o projeto de encenação do “Não Pensa Muito Que Dói”. Como a peça já estava pronta e realizada, eu apenas tinha que, mediante a apresentação de relatório, receber o dinheiro. Não era muito, mas vinha sempre bem. Participar da Bolsa Arte, mais do que tudo, constituía um prestígio. Sem falar na ajuda para cartazes, que eram impressos na faculdade e gozava, por participar do projeto, de certas regalias como salas de ensaio e xerox grátis.

Escrevi a primeira cena da peça do “Bailei”. Ensaiamos no Auditório Tasso Correa do Instituto de Artes. Muitas improvisações. Depois do ensaio eu tentava escrever. Muitas imagens pairavam sobre a minha mente. O quarto dos fundos do apartamento da Getúlio era destinado a empregada. Foi transformado no meu escritório onde eu passava horas escrevendo à máquina. Duas técnicas de dramaturgia muito úteis. A reversão de expectativa e a inversão. A primeira se realiza construindo um clima numa determinada direção e quase em cima, muda-se a perspectiva. O resultado: humor. A inversão é quase a mesma, mas com uma peculiaridade: um texto aparece de novo na boca de outro personagem. São técnicas simples, circences, e sem perceber eu as uso na cena do carro.

A grande questão quando se escreve é seleção do momento, o recorte. A opção por um determinado momento, uma determinada ação tem um caráter de incerteza e indecidibilidade da origem. Escolhe-se às escuras, quase ao acaso. A capacidade maior ou menor de um artista seria na disposição de mergulhar nesta transitoriedade a espera que em algum momento um gesto, uma ação ou uma palavra, integrará a trama. Descobri, anos depois, que essa ação se chama “fato selecionado” e foi descrita por um matemático chamado Poincaré. O fato selecionado é fundamental para a dramaturgia. Até este dia, tínhamos muitas cenas improvisadas e algumas anotadas. Neste dia escrevendo, ocorreu o fato selecionado.

Lembrei da primeira vez que sai com uma guria de carro. Eu tinha uma namorada e queria sair com outra moça, que depois acabei por namorar. Sábado à noite, combinei com meus amigos que simularia uma bebedeira e eles me levariam para casa. Assim eu fiz. Minha namorada, intrigada, ficou se perguntando como é que eu, tão forte para bebida, ficara bêbado tão rápido. Meus amigos me deixaram em casa e pedi o carro emprestado do meu irmão. Era o Opala 4100 com tala larga de magnésio, quatro marchas, cambio no console e um som afusel. Ele, solidário, me emprestou desde que eu lavasse o carro no dia seguinte e colocasse gasolina. Passei na casa da moça perto das onze horas. Combinamos de ir na boate Macumba. No caminho ela quis comprar cigarro e parei no Posto Figueiroa. Pedi cigarro, conversei com desenvoltura com o frentista. Ainda não tinha carteira e queria dar a impressão de experiente. O cara trouxe o Minister e eu fiz questão de pagar. Chegamos na Macumba. Conversamos, dançamos e eu queria beija-la, mas não encontrava maneira. Dancei colado e ela virou rosto. Na hora da luz negra, os olhos dela era duas pérolas azuis me convidando, mas a boca recusou. Sentamos para um drinque. Será que vou ter dinheiro para pagar o Gin Tônica? Ela olhou para o lado, balançando o ombro com um desleixo premeditado e seguiu olhando para a pista de dança até que eu toquei em seu ombro. Ela se virou e eu ataquei. Um beijo na boca direto sem escala. Ah, que beijo! Na saída da boate, tive que pedir dinheiro para ela para completar a conta. O dinheiro do cigarro voltou. Na saída da Macumba, fomos para a Prainha.

Essa experiência e outras, inspiraram a cena do carro. Na primeira versão do texto tinha o episódio do frentista e do dinheiro emprestado. A piada que eu mais gostava no momento da redação era quando Ruth depois de combinara com Vera que não beijaria sem que ele lhe pedisse em namoro, de deu conta que beijara antes:

- Mas tu me beijou e ainda não me pediu em namoro.

- Preciso de um tempo para pensar. – Era a técnica da inversão de falas.

Abril, 13.

  1. Ensaio.
  2. Cena do carro.
  3. Escrevi.

Lemos pela primeira vez a cena na porta do Instituto de Artes. Dia nublado, enquanto esperávamos a liberação da sala. Leitura branca em teatro significa ler sem as intenções. Só para tomar contato com a cena. Enquanto líamos, meu coração palpitava. Terminou a leitura e eu me desculpei. É só um exercício. O elenco gostou. Aquilo foi um incentivo para seguir escrevendo.

Como muitos que eu já vinha fazendo, ensaiando uma escrita. Uma vontade tímida de escrever para teatro aparecia camuflada na idéia de que fosse apenas um exercício. Lá no fundo, sentia que a peça começou ali. O norte estava estabelecido. Tínhamos que criar algo antes e algo depois. Já tinha o coração do Bailei. A cena do namoro no carro.

2 comentários:

Luana Duarte Fuentefria disse...

Que ótima idéia, Júlio.
Esse blog certamente daria um livro. Afinal, aqui tem grande parte da história do teatro gaúcho.
Parabéns! Continuarei lendo.

JULIO CONTE disse...

Obrigado e continue lendo.
Abração!