sexta-feira, 7 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (2)

Janeiro, dia 3

  1. Volta para Porto Alegre.
  2. Sessão com Abrão Slavutzky.
  3. Passar na Censura Federal. (apanhar certificado)
  4. Clair.

Volta para Porto Alegre, sessão de análise.

Voltei para Porto Alegre e à tarde, primeiro horário, entrei no consultório do psicanalista Abrão Slavutzky. Começara a análise em 79 e até aquele momento da minha vida era marcado pelo ser ou não ser entre o teatro e a medicina.

Uma questão hamletiana.

Primeira elipse, um rápido panorama do teatro

O teatro mostrava inviável como profissão e o retorno para a faculdade de medicina se tornara imperativo. No início da década de sessenta uma diáspora artística gaúcha determinou uma debandada dos artistas de teatro para o mercado profissional no Rio de Janeiro e em São Paulo, resultado da absoluta falta de estrutura profissional. E isso perdurava. Um mercado fechado, produções pobres e uma colonização cultural interna na qual o movimento teatral baseava-se quase exclusivamente em remontagens de sucessos ocorridas no eixo. Somava a isso um público que, num paradoxo narcísico, se valorizava desprezando os seus. Este conjunto colocava nosso teatro como uma filial do centro do país.

Em 77 abandonara temporariamente o curso de Medicina para me dedicar ao teatro e já final 79, num esforço desesperado, fizera três peças para a Campanha das Kombi, num conhecido projeto de popularização do teatro. O governo pagava um subsídio e assim barateava os ingressos, melhorando o fluxo de público. Naquele final do ano de 79 eu dirigira o texto “Palhaçadas” de João Siqueira, peça infantil em temporada no Teatro de Arena. Pedrinho Santos e Marco Sório no elenco. Ainda no período da tarde eu entrava em cena em “A Comunidade do Arco Íris”, de Caio Fernando Abreu, com direção da Suzana Saldanha, e a noite interpretava um soldado romano em “O Julgamento de Lúculus”, Bertold Brecht, com direção do L.E. Crescente, nos porões do MARGS. Mesmo assim para sobreviver tive que vender quatro boxes de estacionamento que haviam sido doados por meu pai, e dava aula de teatro numa pré-escola chamada Balão Vermelho. A bancarrota iminente, o nascimento do Pedro e a falência das produções me obrigaram a um retorno, um tanto melancólico, para a Faculdade de Medicina. Para completar o quadro, rodara, por dois décimos, na disciplina de Medicina Interna I, pré-requisito essencial para a continuidade do curso. Restaram algumas matérias esparsas deixando o semestre um tanto ocioso.

Passar na Censura Federal. (apanhar certificado)

Mais tarde naquele mesmo dia, passei na Censura Federal para apanhar o certificado de censura, pois sem o autorização do Serviço a peça não poderia entrar em cartaz e era urgente a resolver a situação da peça “Não Pensa Muito Que Dói”. Em dezembro de 82 todas as apresentações foram sem a tal liberação e por isso clandestinas. Aconteceram no teatrinho do DAD – Departamento de Arte Dramática, Salgado Filho 330 - e tinham um caráter curricular para um público interno formado de alunos e professores. No entanto, resolvemos que seriam abertas ao público em geral, e por isso exigiam a liberação da autarquia. Por um capricho adolescente, simplesmente me recusara a passar pelo ensaio da censura, colocando a peça em cartaz a revelia. No segundo dia daquela curta temporada, um funcionário público, agente do Serviço de Censura, apareceu com uma intimação. Fora “convidado” a prestar esclarecimento para o Chefe do Departamento e Censura Federal do Rio Grande do Sul.

No dia seguinte, meu coração batia descompassado quando entrei na sala. O censor me examinou de cima a baixo. Falava comigo, mas eu logo percebe que seu pensamento estava em outro lugar. De repente, seus olhos brilharam – ele encontrou o que procurava em sua viagem interna -, e falou com uma bondosa ameaçadora:

- Inclusive é ruim para ti desrespeitar a censura, apresentando sem autorização por que já tens outra peça que já passou pelos nossos arquivos...

Ele se referia a “O Reino do Sol”, uma peça infantil que escrevera no ano de 78 e que tivera sua montagem totalmente interditada pelo Serviço de Censura de Porto Alegre. As avaliações, anteriormente, eram feitas em Brasília pela famigerada Solange Maria Teixeira Hernandes. Este procedimento demorava vários meses e era necessário passar por processo de descentralização a fim de agilizar os despachos. Ao mesmo tempo era um ensaio para uma possível abertura e o resultado seria o vislumbre de uma distensão política e da abertura que se realizaria nos anos seguintes. “O Reino do Sol” foi uma das primeiras peças a serem examinadas na sede de Porto Alegre, e apesar de ser uma peça infantil era recheada de alusões políticas, partidárias, pedagógica, democrática e interativa. Uma irreverência absoluta tanto em nível de texto quanto de interpretação. Marcou meu encontro explosivo e intenso com as personalidades de dois grandes artistas que, assim como eu, buscavam seu lugar ao sol: Camilo de Lélis e Roberto Oliveira.

O Reino do Sol” era um texto que falava de um reino despótico a ser derrotado por uma eleição. O espetáculo tinha seu ponto alto na participação do público, antecipando à onda interativa que invadiu os teatros nos anos noventa. Como a eleição e a democracia eram temas da peça, a platéia era convidada a exercer seu direito de votar para presidente. Anárquica e subversiva a peça foi censurada. Mesmo assim, algumas apresentações foram feitas e o resultado era quase que invariavelmente era de uma comoção libertária que culminava com a eleição de alguém do público, geralmente o aluno, geralmente o mais popular. Como apresentávamos para escolas num período onde a repressão política ainda mostrava seu autoritarismo, os alunos demonstravam sua rebeldia pela insubordinação. A interdição do texto e da montagem foi um grande constrangimento para o Departamento de Censura de Polícia Federal do Rio Grande do Sul, pois já em um dos seus primeiros exercícios de autonomia, via-se obrigado a uma atitude drástica e antipopular. Ora, censurar uma peça, ainda por cima, infantil!

O censor, um funcionário público de carreira, sorriu enquanto me ameaçava. Eu nunca esqueci o seu olhar. Era torturado olho no olho com torturador.

Anos depois da abertura soube que este funcionário morrera numa explosão de um botijão de gás.

Mas quem estava a ponto de explodir era eu.

Clair.

A anotação seguinte, Clair, referia-se à fisioterapeuta que atendia o Pedro. Nascido no dia 21 de janeiro de 1982, dois dias depois da morte de Elis Regina. O trágico que se anunciava para o Brasil com a morte da nossa maior cantora, tomava, no meu pequeno mundo, um caráter catastrófico.

A lesão cerebral nascera junto com Pedro.

Com três meses não sustentava o pescoço. Com seis não sentava e com nove meses não só não engatinhara, como iniciara o período mais crítico do seu primeiro ano de vida marcado por convulsões intensas e freqüentes. Espasmos tônico-clônicos que a princípio pareciam movimentos inofensivos, mas que aos poucos viraram um fantasma que nos tirou o sono e transformou cada movimento de Pedro num sobressalto. Percebia-se que ele demorava em fixar o olhar e que um grande esforço era necessário para que ele acompanhasse o movimento das pessoas. Nestes esforços Pedro mobilizava uma parte do seu cérebro danificada e daquele foco de insubordinação neuronal começaram a produção de estímulos desconexos. A cada um deles correspondia uma convulsão. E eram muitas. Passariam desapercebidas a um leigo, um esgar aqui, outro movimento estranho ali, seguido de um silêncio corporal e um olhar assustado. O que era uma suspeita se transformou numa triste certeza. Aqueles gestos involuntários não só tratava-se de convulsões, como tinham um efeito aterrador. Agravavam paulatinamente o quadro. Pedro arregalava os olhos com se perguntasse o estava acontecendo e o que significava aquela turbulência interna na qual ele estava imerso? Ele nunca pôde saber, mas nós sabíamos que cada daquelas convulsões determinava um agravamento do quadro. E elas foram aumentando. Vinte, trinta, quarenta. Chegaram a oitenta crises por dia. Orientados pelos neurologistas, anotávamos as crises num caderno, minuto a minuto, com o intuito de estabelecer um padrão. O estabelecido foi que ele apresentava convulsões o tempo todo. Nem mais de manhã, nem menos à tarde e nem menos ainda à noite. As convulsões eram constantes, pertinazes e eficientes. Atacavam neurônio por neurônio de modo sistemático e repetitivo. A medicação anti-convulsiva se mostrava impotente para conter o ataque. Cada convulsão era uma lâmina que cravada no cérebro de todos nós.

A Clair era uma mulher generosa. Formada no cotidiano, a prática foi a sua escola. Fora durante muitos anos atendente de uma Clínica de Fisioterapia e ali aprendera tudo que precisava. Estávamos de olho nela há muito tempo. E quando ela sai da Clínica nos a contratamos.

Imagino que se de fato existirem pessoas superiores para tratar de pessoas especiais, então Clair seria uma delas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Júlio. Que lindo, muito lindo! Irei acompanhar os capítulos dessa "curva que baila a vida". Um grande beijo, com emoção, Juliana Barros

Anônimo disse...

querido julio! agora ñ é próprio q eu comente qualquer coisa...só uminhas :
eu estava por perto um pouco antes, concomitantemente, e o depois foi precipício para nós dois...ou três ou quatro...,
fico feliz de mais, por te ver dando uma forma exterior à tua profecia, pois todo homem é um profeta, é um vomita-dor de luz...gostei assaz do bueiro(1983)e da língua-faísca-cérbera a liberar o canal subterrâneo!beijão fraterno, camilo de lélis.