Janeiro, 27.
- Balanço do teatro.
- Visita do Flávio.
- Saída da Marília.
Balanço do teatro.
Janeiro estava se encerrando. O movimento teatral gaúcho se resumiu a três peças de teatro, todas de grupos novos. “Murro em Ponta de Faca”, de Augusto Boal, na Sala Álvaro Moreira, direção de Bety Fano, na qual trabalhava um ator que eu ainda não conhecia e que veio a ter um papel muito importante no Bailei: Fernando Severino. “A Mãe”, de um grupo chamado “não semo istrela mas briamo” e o “Ciclo da Inconstância”, do Euclides Dutra de Moraes, o Kydo, premiado junto comigo no I Concurso de Dramaturgia Qorpo Santo. A peça os “Reis Vagabundos” de Maria Helena Lopes fora escolhida para viajar pelo Brasil no Projeto Mambembão. De São Paulo veio uma peça dirigida pelo primeiro mímico brasileiro, Ricardo Bandeira. “Todo o Mundo Nu” e esteve em cartaz no Teatro Presidente. Não vi e não me arrisquei a ver.
Visita do Flávio.
Recebi a visita do Flávio Bicca Rocha e uma reunião com algumas pessoas da peça “Não Pensa Muito Que Dói”, obra de encerramento da faculdade de Direção Teatral. Já havíamos tido alguns ensaios esporádicos no final de 82 e Flávio foi à minha casa naquela noite de janeiro para me questionar sobre o que faríamos nesta nova peça. Na verdade, isso já era um hábito dele. Já havia feito isso no ano de 82 quando surgiu no meio da noite para saber como se desenvolveria a proposta de fazer uma crítica ao DAD através da peça “Não Pensa Muito Que Dói”. Este tipo de dúvida sempre assolou a personalidade de Flávio, sempre tão hamletiano em seu drama de ser ou não ser. Nunca me esqueço que depois da estréia do “Não Pensa Muito” no teatrinho do DAD em 82, saímos juntos para comemoram no apartamento da Marília Rossi que morava no centro, na Jerônimo de Ornelas. A apresentação tinha sido um sucesso, nunca tinha visto o público de um teatro rir tanto. Eles riram de cada piada, se reconheceram e se emocionaram de uma forma que eu não esperava. Não podia imaginar, pelas experiências vividas por mim até então, que o teatro pudesse ser uma ferramenta a produzir tal intensidade emocional. Estávamos ainda em estado de choque, elevados pelo sucesso. Foi uma evidência que teatro não precisava ser uma coisa chata. Tivemos a certeza que havia um caminho viável e eu embarcaria nele atrás deste sonho. Entramos no fusquinha do Flávio e ele disse uma das frases mais emblemáticas, que representa a ele mais do que qualquer outra que já escutei. Ele simplesmente ligou o motor e sem olhar para nada disse:
- Agora eu acredito na peça. – e ligou o motor do fusquinha.
- Agora não precisa mais – retruquei - depois da estréia qualquer um é capaz de acreditar. Tive vontade de mandá-lo a merda. Sempre pensei que um artista, um verdadeiro artista, tem que acreditar antes e justamente por isso, por esta visão da aurora antes do amanhecer é que é um artista. Contive o ímpeto e apontei uma vaga para estacionar.
O mais engraçado é que um ano depois dessa conversa estava ensaiando Bailei na Curva e os personagens Torugo e Paulo Renato desfilavam suas fragilidades num fusquinha.
Saída da Marília.
Ainda em dezembro de 82 reuni o grupo para explanar o projeto de utilização de um roteiro análogo ao do “Não Pensa Muito”, porém num universo mais amplo. Foi aí que estabeleci que a questão golpe militar versus revolução e o dia 1° de abril versus 31 de março seria o ponto chave da idéia da nova peça. Ali eu estabelecera a metáfora que geraria toda a criação do “Bailei na Curva”. Não tenho anotações de quem estava presente, talvez o Flávio, a Regina e Torquato estivessem. A Claudia e a Marília também, mas não tenho certeza. Tenho anotações de um ensaio preliminar. Foi numa academia de ginástica na Rua Rodolfo Gomes e o Torquato e a Marília improvisaram pela primeira vez a cena do carro. Eu levara a proposta de trabalhar com as nossas lembranças. Torquato criou um Chevrolet 61, com portas imensas e grandes espaços internos e junto com a Marília que improvisou a esposa, foram passar o domingo na beira do Guaíba. Era uma cena deliciosa com crianças brigando sentar na janela do carro, a mãe gritando, a farofada do domingo à beira do Guaíba. Na praia de Ipanema, areia grossa, guarda-sol, bóias de câmara de pneu, e a mãe pedindo desesperada para os filhos não nadarem lá no fundo. Com certeza foi o germe da cena sobre um fim de semana em Tramandaí da peça “Cabeça-quebra-cabeça” de 84 e da cena do carro do “Bailei na Curva” realizada meses depois.
Quando nos despedimos na esquina da Av. Getúlio Vargas com a Rodolfo Gomes, a Marília me disse que não faria a nova peça . Falou como se fosse uma coisa banal, sem muita importância. Fingi que não sentia nada e lhe dei dois beijos de despedida. Lamentei não ter insistido nem falado da importância dela, que sem ela o “Não Pensa” não seria o que foi, mas calei. Marília fora essencial no processo de criação e um conforto emocional. Ela foi minha primeira namorada na Escola de Teatro. Ela era motivo de chacota, pois num meio liberal do teatro ela se vangloriava de ser virgem. Quando começamos a namorar, todos pensavam que ela teria perdido a virgindade comigo. Não foi verdade. Eu é que perdi a minha virgindade estética com ela. Pois ela me ajudou a entrar no mundo teatro e me apaixonar por esta estranha arte de representar.
Depois de dois beijos foi embora. Como bom leonino que sou, segurei o abandono fingindo que nada acontecera. Comecei, imediatamente, a pensar em quem entraria no seu lugar.
Fevereiro, 10.
- Márcia.
- Interlúdio.
Márcia.
A solução estava em casa. Falei com a Márcia do Canto e ela entrou na peça. Casados há pouco tempo, Márcia trazia a marca do sucesso em tudo o que fazia. Fora uma das responsáveis pelo sucesso de Schools Out fazendo o aluno ridículo, onde se destacava pela caracterização. Depois, na simpática Tita dividindo a cena com o amigo surpreendido pelo pai com maconha no bolso da jaqueta e, por fim, arrancando suspiros da platéia com suas cenas sensuais mostrando toda a beleza que encantou Caetano Veloso. Uma das mulheres mais linda que já conheci, tudo que ela fazia dava certo.
Esse era o último dia de inscrições para o Prêmio Qorpo Santo e, no dia seguinte, o aniversário da Dona Virgínia, minha mãe. Um churrasco na Rainha do Mar com toda a família reunida. Discussões políticas polarizadas entre meu irmão, à direita, e meu cunhado e minha irmã, à esquerda. O muro ainda não havia caído nem a exclusão mostrava a sua violência globalizada.
Interlúdio.
Numa pequena sala na rua São Manuel, gravei o áudio do filme Interlúdio, direção de Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase. Era um filme de curta metragem em 35 mm que fora filmado durante carnaval de 82. No elenco tinha a Márcia do Canto, Matinha Biavaschi, Lúcia Serpa, Cleide Fayad, Marília Rossi. As locações foram no Supermercado Zaffari da Fernando Machado, no tradicional trailer de cachorro quentes chamado Zé do Passaporte, no extinto Cine Coral, numa esquina da Santana e no próprio apartamento do Giba na Cabral. O filme saiu muito bem, mas o áudio ficou muito carregado de um sotaque exageradamente gaúcho. Era o início da passagem do Super 8 para o 35 mm o sistema de produção do grupo veio a se realizar plenamente na Casa de Cinema e acabou gerando vários longas metragens entre ele Verde Anos e Me Beija, filmados durante o ano.
“Interlúdio” participou do Festival de Cinema de Gramado. Não ganhou nenhum prêmio e só voltou a ser apresentado no projeto da Curtas Gaúchos na RBS TV, 18 anos depois. Pode ser visto em retrospectivas no Canal Brasil.
3 comentários:
Julio, siga sempre chato e me avisa das novas postagens. Estou acompanhando capitulo por capitulo. Isto da um belo livro; memórias que não bailaram. U abraço Jones
Não foi na rua que disse que ia sair! Não foi sem explicação! Expliquei muito bem as razões. Nao foi após um primeiro ensaio. É realmente necessário tomar tantas "licenças nada poéticas" para tornar um texto mais interessante? Tu, que eu achei que me conhecia tanto, não percebeu que naquele momento eu tinha dado tudo que tinha, estava seca por dentro. Naquelas improvisações eu sentia que não tinha nada pra dar. Talvez ainda não entendas. É mais fácil colocar um rótulo e conhecer todas as reações e intenções, saber toda a história de uma pessoa, mesmo antes de acontecer. Talvez este desabafo jamais seja lido, mas tem mais de onde saiu este. Se tu leres, Júlio, espero que penses com a tua cabeça. Bjs magoados. Marilia Rossi
Sou um apaixonado por Bailei desde o dia em que li pela primeira vez...
tenho 19 anos, e conheci bailei aos 14... sempre tive muita vontade de fazer, mas nunca saiu do papel...
hoje não estou mais no meio do teatro, estudo Direito(num tem nada a ver né,rs. Parei com as artes cenicas e entrei nas artes cinicas) mas com certeza um dia vou fazer bailei, e realizar esse que julgo ser o projeto da minha vida...
Por enquanto ja ficaria muito feliz de assistir uma encenação do bailei, nunca consegui ver uma, nunca fico sabendo, só depois que aconteceu...
sei que aqui em são paulo é meio dificil, mas vou deixar aqui o meu contato para o Julio, e para quem mais se interessar em bailei e quiser fazer contato.
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