terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Uma raridade: o certificado de liberação de Bailei na Curva com data de 28 de setembro de 1983 quando ainda havia ainda a possibilidade da peça se chamar "Primeiro de Abril".

Setembro 28.


  1. Telefonema do Geraldo.


Geraldo me ligou a respeito de uma chamada que recebeu da Censura Federal. Um calafrio. Será que censuraram a peça? Não só não houve cortes como o diretor inflado pelos censores que adoraram a peça, solicitaram vários convites.

Anos depois, outro ensaio para a Censura, numa montagem no Rio de Janeiro, aconteceu algo também inusitado. Na cena em que Pedro vai para a clandestinidade e assume a luta armada, o ator Carlos Lagoeiro fez uma das maiores interpretações do personagem Pedro que tive oportunidade de assistir. Eu ensinava a operação de luz para o técnico do teatro quando uma força vinda do palco chamou minha atenção. Lagoeiro se derramava de emoção em sua despedida da mãe, a costureira Dona Elvira. Ao final do ensaio, uma censora, uma mulher loira, alta, de quase quarenta anos estava em prantos. Aplaudiu de pé e começou a falar com os atores. Estes se agruparam para escutar o relato. Desci da cabine de luz e som e fui até a beira do palco a tempo de escuta-la dizer:
- Minha mãe é costureira e meu irmão foi desaparecido pelo DOPS.
A ficção tem formas estranhas de se realizar na realidade.

Setembro, 30.



  1. Sonho que tive antes da estréia

"Estamos estreando a peça. O local parece o ginásio do Petrópole Tênis Clube, só que adaptado para o teatro. Há um grande público de espectadores misturado com torcidas de futebol. Muita gente nas arquibancadas. Começa a peça. Sinto que as coisas não andam. Ruídos na platéia. Pelas janelas do ginásio vaza uma luz difusa. Público começa a se levantar e abandona a sala de apresentação. Em pouco tempo de encenação o ginásio está vazio. O público que era imenso vai embora. Voltamos para o segundo ato e não havia nenhuma pessoa assistindo a peça. Uma vez que está tudo montado, luz, sonoplastia, proponho:
- Vamos aproveitar e ensaiar para a próxima apresentação."



Foi um sonho clássico. Quase todos artistas têm sonhos parecidos. Sonha-se que as falas são esquecidas. Sonha-se que alguém não consegue entrar em cena, que cai um refletor, que falha o som, um pedaço do cenário cai, que não se consegue cantar. Reflete uma espécie de angústia que sentimos quando estamos frente a imensidão do próprio desejo. Relaciona-se com aquele tipo de sonho em que se aparece nu em lugares públicos. Tem algo de exibicionismo. Algum tempo depois descobri que é um sonho de ambição e de exibicionismo que aparecem representados pelo seu oposto. Ambição é um impulso uretral conforme Freud demonstrou na Interpretação dos Sonhos onde ele relata um sonho seu no qual um menino urina na cama e o pai dele vaticina será um grande homem ou um grande bandido. O menino era Freud.
A anotação desse sonho está num papel amassado de uma folha arrancada. Preso por um clipe na agenda. A letra é quase ilegível, anotação feita ao despertar. A análise já tinha terminado, mas, como toda a análise, é interminável. Cessaram os encontros analíticos, mas depois que se é inoculado pelo pensamento psicanalítico a referencia permanece na mente num processo interminável. O sonho funcionou de duas formas. Como uma advertência no plano da realidade, cuidados eram necessários para evitar uma catástrofe. Por outro lado, restos de pensamentos mágicos me davam a impressão de uma profecia invertida e por isso mesmo guardei este sonho como um talismã. Anos depois, num processo de re-análise, contei este sonho para o Abrão e ele, com a generosidade que lhe é própria, centrou a interpretação na frase final do sonho, destacando a capacidade de enfrentar as dificuldades em situações adversas. Em Forqueta, ainda criança, dentre os escombros da memória, guardo um quadro pendurado em cima da minha cama com um anjo da guarda protegendo um menino que passava perto de um abismo. Minha reza predileta, naqueles tempos em que eu rezava, era assim:



"Santo anjo do senhor meu zeloso guardador.
Se a ti me confiou a bondade divina.
Levai me sempre pelo bom caminho."


Até hoje, perto das estréias, sempre anseio por este mesmo sonho talismã, sonho premonitório que me acompanha como um anjo da guarda.

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