sábado, 8 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (3)

Janeiro, 5.

  1. Bom dia 1983.

Show no Araújo Vianna reuniu Geraldo Flack e Grupo, Giba Giba, Toneco, Talo Pereyra, e o Canto Livre. As boas vindas para o ano começavam com Geraldo Flack que tinha Augustinho Lick na guitarra. Ele junto com Nei Lisboa, lançariam disco que seria um marco da música gaúcha, na época chamada MPG – música popular gaúcha. O LP “Para Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina” seria, naquele inverno uma mercadoria rara e valiosa a percorrer a cidade de mão e mão subvertendo as falhas de distribuição.

Elipse: essa tal de música gaúcha.

A designação de MPG denotava o sentimento de exclusão da arte gaúcha. Ainda bem que não vingou. Foi logo deixada de lado. Sempre acreditei que a música, teatro ou cinema quando designado de “gaúcho” deveriam apenas servir de nomeação geográfica. Nunca uma estética particular, pois, qualquer arte feita no Rio Grande do Sul ou Rio Grande do Norte teria que ser antes de tudo brasileira.

Na iluminação do Bom Dia 1983 estava o mestre João Acir. Foi meu professor de iluminação e trabalho com todos os grandes nomes do teatro brasileiro. Através de uma história que ele me contou, elaborei a diferença entre método e talento. Contou que estava começando a aprender a arte de iluminação teatral e trabalhava no Theatro São Pedro. Algum tempo antes, ele assistira uma montagem de luz do Adolfo Celi um dos importantes diretores italianos importados pelo TBC. Sua iluminação era cartesiana: um refletor 45 graus de frente, um refletor de cima, conhecido como pino, um contra. Esperava algo semelhante quando Ziembinsky entrou no teatro, gripado, enrolado num grosso echarpe de lã. Mau humorado e com desleixo gritava para os técnicos:

- Mais para cá, , mais para lá. Agora coloca um refletor ali. Pronto, deu.

Zimba, com passou a se conhecido, inventor do teatro brasileiro com a montagem de “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues, não esperou para ver o resultado. Saiu batendo a porta.

O jovem iluminador achou estranho aquilo tudo e foi embora decepcionado.

Naquela noite João Acir assistiu das melhores iluminações de sua vida.


Mais uma elipse temporal e um pedaço da análise.

Muitos anos antes do longa-metragem “Deu Pra Ti Anos 70” meu pai chegou em casa com um pacote de baixo do braço. Colocou em cima da mesa. Era uma câmera de Super 8. Comprara nos EUA durante uma viagem de negócios. A compra envolvia uma complicada história de falta de domínio da língua inglesa, com a já tradicional desconfiança de gringo. Meu pai e minha mãe tinham certeza que o nipo-americano que lhes vendeu a máquina numa pequena loja de eletrônicos em Nova Iorque havia lhes enganado. O suposto truque envolvia uma troca de pacotes. Vendia-se um produto e entregava-se outro. A verificação da fraude se dava horas depois no quarto do Hotel, onde se percebia que a desejada filmadora fora substituída por outra de menor qualidade. Meus pais voltaram a loja e simplesmente destrocaram a filmadora, sem nota fiscal, sem comprovantes de vendas e saíram a rua. Poderiam ter sido detidos por roubo. Meu pai contava estava história de uma forma jocosa, uma bravata que beirava a luxúria. Pois foi nesta filmadora que eu realizei a minha primeira obra. Foi a filmagem de uma flor. Fiz um zoom de aproximação, lento, aproximando em close, desfocando o fundo e salientando as cores e o contraste. Corte. Nova tomada, câmera de ponta cabeça. Curto e corte. Vista lateral e corte. De pé e corte. Novamente de cabeça para baixo e corte. Repetiram-se vários takes rápidos, estanques e intensos. Depois um zoom de afastamento. Lento, lentíssimo e derradeiro. Fim da cena. O momento de captação foi uma brincadeira de criança. Dias depois, filme revelado, a visão da pequena cena foi um choque emocional para mim e para todos na sala. Deslumbrou. Anos depois esta cena veio a minha mente e percebi que foi a primeira vez que senti que poderia fazer alguma coisa de criativo. Tinha vivido a experiência de desenhar com a tesoura quando criança. Minha mãe tratava de empresariar o espetáculo. Não havia aniversário, festa ou velório no qual eu não era convidado para recortar em púbico meus objetos. Mas estes eram brinquedos meus, sem objetivo de partilha, era criações para meu próprio deleite. Com o tempo comecei a me recusar a faze-los em público.

Porém, esta cena da filmadora, vista sob a distância do tempo, forma um delicado paradigma estético. A beleza colorida da flor que chama a atenção. A aproximação voraz, intensa, desejante. O encontro turbulento com o objeto, ponta cabeça, reviravoltas, perspectivas. Por fim um afastamento sábio, algo que se processou e me transforma. Percorro o mesmo caminho, agora de volta, mas não sou mais o mesmo. Tive assim a minha primeira iluminação estética. Anos depois, já em análise, senti uma estranha sensação nas mãos. Formigavam e me ocorreu uma espécie de poema no qual via minhas mãos suficientemente fortes para criar muros, paredes, portas e poemas. Por um instante me senti um operário da arte, um artista.

Foi também numa das primeiras sessões de análise que um sonho se revelou. Via o relógio da casa da minha Vó. O pêndulo dentro de uma escultura de madeira. Lá em cima um pombo e a morada do cuco que sistematicamente marcava as horas cheias com um trinar agudo e histérico. Contei este sonho em análise. Sonhos de início de tratamento, assim como as primeiras impressões, os as primeiras palavras, tem um tom antecipatório e profético. O relógio marcava o alvo da minha análise, apreensão da temporalidade e conseqüente aquisição da eterna companheira. A morte. Essa companheira que em psicanálise não é só a morte, mas a castração, é o contato com nosso limite e contrato com o nosso desejo. Essa noção de temporalidade determina o fruir vital. A interpretação do Abrão foi maravilhosa. Ele não se precipitou e interpretações milagrosas, mas usou a sua intuição e perguntou o nome da minha Vó. Virginia, mesmo nome da minha mãe. Durante o período de redação da peça, Dona Virginia se tornou a primeira fala de Bailei na Curva. Gabriela entra em cena e diz:

- Ó, Dona Virgínia como vai?

Inicio e fim.


Janeiro, 7.

  1. Exame.
  2. Lembrar & Comprar.
  3. Carteira de motorista.

Junto a esta anotação estava um lembrete para pegar os exames médicos do Pedro, comprar um Tape Deck e entregar o Edital de ocupação de teatro.

Carteira de motorista? Não sei o porquê desta anotação.

Talvez pensasse em dirigir melhor a minha vida.

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