domingo, 9 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (4)



Janeiro, 8, sábado.
  1. Reunião de pais.
Reunião de pais.
Na Escola fundada pelos pais de crianças com lesão cerebral, conheci muita gente, muitos pais e filhos que sofreram muito. Lembro do Fabinho, mais velho do que o Pedro. A lesão dele fora originada por erro metabólico. Alguns alimentos que deveriam ser decomposto no organismo, por falha do metabolismo, não possuíam vias adequadas. Isso produzia um acumulo de metabólitos no cérebro produzindo a lesão. No caso do Fabinho, a causa foi descoberta e ele teve uma evolução boa para as circunstâncias. Perdi contato com ele e com sua família. Ele era ruivinho e com um olhar esperto que contrastava com as restrições que seu delicado corpo apresentava.Luíza era uma amiguinha do Pedro. As atendentes diziam que eles eram namorados. Ela era espástica, ou seja, todos os músculos ficam exageradamente tensos. Era morena, bonita. Morreu com 15 anos. Seu pai foi amigo da minha família. Era um cara muito amoroso e cuidava da filha com tal dedicação que me deixava sempre com sentimento de culpa por eu não me sentir tão bom e dedicado quanto ele. Um dia pai de Luíza encheu de tudo. Separou-se, arranjou várias namoradas. Morreu num acidente de carro. Viajava num final de tarde, sem óculos, que ele se recusava a usar, e entrou embaixo de um caminhão que transportava carros. Por ironia do destino este tipo de veículo é conhecido como “cegonha”.
Havia três viúvas chorando ao lado de seu esquife.
Segunda-feira, 10 janeiro.
  1. Pagamentos.
  1. CRT.
  1. Qorpo Santo.
  1. Ciclo de cinema político no Bristol.
  1. Brandão.
PagamentosPaguei a CRT no Banrisul e fiz diversos pagamentos. Depois entreguei o material para o prêmio Qorpo Santo de dramaturgia.
Anotei os pagamentos a serem efetuados no dia 12:Clair, 20.000,00 cruzeiros, Brandão, 30.000,00 e Abrão, 24.000,00.
Qorpo Santo Foi a segunda versão do Prêmio Qorpo Santo. Eu participara da primeira, em 1980, ganhando o segundo prêmio de dramaturgia para crianças. Desta vez, ao contrário da primeira na qual a premiação era a simples publicação do texto, a quantia de Cr$ 300.000,00 era destinada para o primeiro lugar e Cr$ 200.000,00 para o segundo. Incluía ainda um Auxílio Montagem de Cr$ 500.000,00. Entreguei os textos na APATEDERGS, Associação dos Produtores de Teatro do Rio Grande do Sul, sede na Av. Borges de Medeiros, 835 – Altos do Viaduto. Na entidade se ensaiava novo modelo de produção que ficou conhecido como “Livre Associação”. Era uma maneira de evitar os pesados encargos empresarias e criava um passo intermediário entre o trabalho com vínculo empregatístico que era contraproducente e o profissionalismo emergente.
Depois, fui no Ciclo do Bristol. Estava passando uma retrospectiva do cinema político do cineasta Costa Gravas.
Não lembro qual o filme e não tenho a mínima idéia do que aquela quantia de dinheiro do prêmio representava.Brandão Paulo C. Brandão era o médico que trabalhava com o Pedro na área da estimulação precoce. O mais estranho (e familiar) foi que com o pai dele, Dr. Paulo Brandão, que fiz o meu primeiro tratamento psicoterápico. Não lembro do rosto do Brandão pai e talvez por isso, em seu lugar colei sobre a sua imagem, a do dramaturgo italiano Luigi Pirandello. Dr. Brandão uma vez me falou do escritor italiano. Como a sessão era a última do dia, às vezes, tomávamos o elevador e saímos juntos do prédio. Encontrar o terapeuta fora do enquadre da sessão tem sido ao longo dos anos motivos de muitas controvérsias. O fato é que é difícil ficar frente a frente com uma pessoa com a qual você conta todas as suas fantasias e todos os seus impulsos mais primitivos e às vezes sórdidos. Naquela noite, ele estava com uma sobrecasaca escura, uma manta de lã. Paramos na banca e eu comprei uma publicação de contos onde o destaque era uma história do Pirandello. Dr. Brandão olhou para a revista, tomou-a nas mãos, suspirou fundo, grave e interessado, comprovando a importância do momento. Balançou a cabeça e falou: “Pirandello”. Franziu a boca e arregalou os olhos. Talvez tenha feito um “hum”. Aquele foi o certificado que coisas que passavam na minha mente poderia ser importantes e que talvez ali uma idéia geminal do teatro ser inseminada no meu cérebro. Dr. Paulo César Brandão, o filho, que cuidava do meu filho, foi a pessoa mais importante naqueles momentos em que se evidenciou que o Pedro tinha um problema grave. Digo isso porque como se pode imaginar há um imenso processo de negação. Toda a família em volta percebe, os vizinhos percebem, as avós percebem. Até mesmo os pais percebem, mas ninguém quer ver. Não se pode subestimar a capacidade humana de negação. Paulo César Brandão foi carinhoso e afirmativo. Confirmou para mim e para a Márcia que havia efetivamente um problema. Pedro tinha uma lesão. Desabamos em choro. Ele nos acompanhou silencioso, o olhar dele nos acalmava, e começou a brincar com o Pedro. Falava como se inventasse um código, como se estivéssemos na origem da humanidade e a linguagem estivesse sendo ali criada, o dedo de Deus tocando o Moisés, era a Capela Cistina re-inventada, Paulo C Brandão era nosso Michelangelo e ali presenciávamos o milagre de uma invenção. Uma linguagem primitiva quase sem códigos, feita de olhares e sentimentos. Ele ensinou a ver nos pequenos detalhes o que estava sendo dito, esboços de movimentos que representavam, fragmentos de uma cadeia comunicativa que, de forma precária, ainda assim era o substituto de discurso. E nos ensinou a paciência de não esperar evolução maior daquela que o próprio Pedro indicasse. Não nos vendeu nenhuma ilusão. Certa vez, num período de desespero, fomos a uma sessão de umbanda. Entrei num grande salão perfumado e cheio de fumaça. A música era bela e ritualística desde o início envolvendo num clima onírico. Os médiuns distribuindo passes, e se ouvia a todo instante a figura do cavalo, um médium que se comunicava com a alma sofredora acolhendo seu sofrimento e expressando a dor. Dentre todos, escolhi um preto velho, gordo, com um olhar generoso e gestos lentos de bondade. Ele incorporou na minha frente. Falou com palavras fragmentadas, suprimindo dos finais, pulando palavras como se fossem mensagens entrecortadas. Falei algumas coisas que estavam acontecendo. Ele estava em transe e eu muito emocionado. Chorava. Naquela hora, ele poderia tirar qualquer coisa de mim, eu estava exposto e a mercê. Ao invés disso, ele falou com uma voz suave, que aquele era o destino do Pedro. Nada poderia ser feito. Eu fui embora e desisti da umbanda naquela noite. Eu queria uma esperança, imaginava que num mundo onde predominava o pensamento mágico eu teria algum consolo. Mas não. Sai da sala e nunca mais voltei a aquele centro. Continuei não acreditando, mas passei a respeitar essas pessoas que se oferecem para trazer mensagens do outro mundo. Havia naquele preto velho uma dignidade que me comoveu.

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