quinta-feira, 6 de março de 2008

Diário de Montagem de Bailei na Curva 1983 (1)


1983.

Janeiro, 1, sábado.

  1. Reveillon na praia.
  2. Família.
  3. Foguetes

Eu, Márcia e Pedro, meu filho, passamos o Reveillon de 83 em Rainha do Mar. A casa dos meus pais na esquina da Rua 3 com a Avenida Principal. Uma construção que vi florescer por obra do meu então cunhado Jorge Moojen. Recém formando em Engenharia testava seus conhecimentos inicias. Fez o projeto e gerenciou a construção. E nesta casa usufrui verão após verão da adolescência até a vida adulta. A casa da praia fora ao longo dos anos uma espécie de sistema de medidas do crescimento familiar. Tínhamos uma parede onde se media o quanto cada um havia crescido naquele ano. Mas o essencial era a medida do crescimento emocional e o exercício das novas experiências. O fato de re-encontrar uma série de pessoas que não se encontravam regularmente durante o ano, dava a medida exata das transformações que a vida impunha. Rainha do Mar se tornara uma espécie de zona franca da nossa imaginação e servia de palco para as primeiras experiências. Equivalente a um cerimonial de passagem, na beira da praia aconteceu o primeiro namoro, o primeiro beijo, a primeira transa, a primeira briga, a primeira desilusão. Rainha do Mas, altar indígena das nossas mudanças ritmadas pelas ondas e pela temporalidade sincrônica de nossos corpos.

Enquanto isso, o presidente João Batista Figueiredo falava de um novo Brasil para 1983. A ditadura militar iniciada em 64 aproximava-se do seu ocaso abraçada numa Abertura Política lenta, gradual e restrita. Prometia-se um retorno as liberdades democráticas e ao estado de direito. A inflação era de 99,7% ao ano e a paz tinha voltado ao bairro da Azenha porque os bombeiros finalmente prenderam um macaco louco que andava assombrando as casa e foi carinhosamente chamado de Quico.

Jantar em família foi no pátio interno da casa, sobre o grama, que meu pai cortava semanalmente, e sob as estrelas de uma agradável noite de verão. A mesa posta a céu aberto, brisa suave e a temperatura amena e aconchegante. A noite dava indícios de um ano promissor.

Meu pai amava e ama seus vinhos. Uma alegria vê-lo abrir uma garrafa. Ele vibrava, entrava em êxtases, seus comentários eram grandiosos como se sofresse de um indefectível entusiasmo. Ele abriu uma garrafa de branco argentino muito perfumado e completou com um chileno, cabernet encorpado da Concha y Toro. Para ele, se o mundo pudesse ser salvo, o seria através do vinho. Nisso concordávamos, eu também sonhava com uma sociedade de bacantes, mais justa, embalada por festas dionisíacas.

Bernardino, meu pai, como um corifeu comandava a noite sentado a cabeceira da mesa e Virgínia, minha mãe, a sua direita. Fernando e Salete, meus irmãos, completavam o coro, e espreguiçavam-se em cadeiras de balanço. Para os gregos o vinho carregava o Entusiasmo que é a presença dos deuses e o Êxtase quando o homem é tomado pela alegria divina. Enquanto aguarda as manifestações dos deuses, eu me encontrava num anti-climax, envolto num silêncio apaziguador. Foi um momento de contemplação e por um instante deixei que a noite pousasse sobre meus pensamentos. Um momento de mansidão, a paz assustadora da calmaria. Os deuses escondem as turbulências em mares tranqüilos.

Antes da meia-noite fomos para a beira da praia. Foi um dos primeiros anos de foguetório em Rainha. Num quiosque abandonado sob a areia assisti o nascer do ano. Refiz meus projetos para o ano: uma peça nova que eu não tinha idéia do que seria; passar em todas as cadeiras da faculdade; saúde e amor. Coisas banais que todo o mundo pensa. Não tinha idéia do que aconteceria dali para frente, mas, de súbito, sem motivo aparente, uma emoção desmesurada me invadiu. Um cone emocional se abriu entre um fogo de artifício e o espocar de um foguete, um lapso temporal e eu fui tragado pelo buraco negro que culminou com o choro convulso lavando meu rosto com lágrimas de incerteza.

2 comentários:

Anônimo disse...

nesse foguetório de virada do ano eu era um moleque da fronteira. melhor dizendo, um piá. eu nunca havia visto fogos na minha breve vida. aquilome assustou e eu corri para as dunas e me joguei no chão. eu tinha certeza que estava em uma guerra. até hoje me pergunto se aquilo num foi um flash back de outras vidas.
beijos
gabriel

JULIO CONTE disse...

Grande Gabriel! Aquilo tudo sempre foi um flash-back de algo que nunca aconteceu. Como a nossa vida é um flash de alguma coisa perdida no futuro ou no passado. No fundo acho que o tu sentiu era um ensaio do que sentiria quando entrasse no Projac!
Mil beijos.